sábado, 4 de outubro de 2014

Se eu renunciasse ao cargo de Governador de Mato Grosso do Sul

Parte III
ONDE ESTAMOS
Num tempo inventado qualquer, algumas décadas no futuro, começamos a discutir os temas que seriam plausíveis numa campanha eleitoral ideal para o Governo de Mato Grosso do Sul, já que a campanha propriamente dita não tinha conteúdo algum digno de nota, exceto as acusações assustadoras de lado a lado sobre as rapacidades recíprocas e as velhas promessas sem qualquer fundamentação quanto à viabilidade. E já não resisto a tergiversar: se a questão é escolher entre quem desvia mais ou menos dinheiro público, seja lá por quais motivos (inclusive justos, mas nunca legais) então o critério de escolha dos nossos candidatos deveria ser: qual a reação esperada de cada um deles no caso de serem acusados pela Justiça? Imagine quem ficaria envergonhado e vote nele. Mas se imaginar que a reação do gatuno ainda será de orgulho e pompa diante do ilícito que cometeu, então fuja dele.
Nesse tempo inventado, qualquer um poderia ser candidato ao governo e não precisaria nem de prestígio, nem de dinheiro, muito menos de chancela de qualquer partido. E assim eu também fui candidato, declarando apenas que me comprometia a cumprir serenamente as leis. Isso fez todo sentido, nessa sociedade imaginária, porque a maioria das pessoas se importavam com o bem público antes e acima do interesse particular.
O interesse público, por sua vez, já estava suficientemente regulado pelas leis. Pois tudo estava e ainda está escrito nas leis: o quanto deve ser aplicado em cada política pública e como deve ser aplicado, os grandes objetivos do Estado, as diretrizes a ser seguidas e até mesmo os critérios para medir os resultados.
Logo, não era necessário que alguém se apresentasse com um diagnóstico crítico (porque até isso também está nas leis, especialmente nos seus considerandos), uma lista bem organizada de soluções e um programa que deveria ser seguido pelo governo, já que temos um excelente programa de governo escrito na própria Constituição do País.
O que é necessário então para um governante além da pacífica aceitação das leis? E se, mais ainda, cumprir as leis é o juramento básico de todos os servidores públicos? E nessa toada cheguei a tantas outras conclusões, a saber:
  1. que o governador não precisa ser um bom gestor, basta que ele seja um político amador e é especialmente recomendado que ele não seja, de modo algum, um político profissional! Ou seja, a política é para os amadores (em duplo sentido: para os que amam o próximo e amam a política, mas não fazem disso um modo de adquirir fama, prestígio e dinheiro) e a gestão é para os profissionais;
  2. dessa primeira conclusão surge outra, que o melhor governador não é o que manda muito, sabe tudo e faz tudo sozinho, mas o modesto, que sabe pouco, reconhece que é um ignorante e escolhe por isso os melhores profissionais para tomar conta da gestão e praticar os atos necessários ao bom andamento das extensas e complexas responsabilidades do Estado. O seu papel, como primeiro dos cidadãos, é juntar-se a tantos outros cidadãos também interessados no bem comum e dedicar-se todos os dias a verificar a retidão dos atos e os resultados efetivos do trabalho dos profissionais contratados temporariamente para cuidar da execução orçamentária;
  3. por fim, que o mandato de um governador não precisa ser de cinco anos, nem de quatro anos, bastariam no máximo dois anos de dedicação desinteressada ao bem comum e ele já poderia voltar, com pleno direito e merecidas honrarias aos seus afazeres particulares, sem precisar nunca mais candidatar-se a coisa alguma, já que isso decididamente não lhe traria qualquer vantagem pessoal.
Mas nesse ponto da jornada e sabendo que a cultura política dos concidadãos ainda estava contaminada pelo caos dos tempos em que a nossa Constituição ainda era diariamente conspurcada por atitudes nada democráticas e muito menos republicanas dos governantes, porque não dá parra arrancar de repente todas as ideias falsas que as pessoas acumularam em suas memórias, propus-me a imaginar o que seria então uma agenda de debates mais adequada a essa “realidade” na qual a bagunça institucional imperava.
Tal agenda, permitam-me repetir pela terceira vez, poderia ser miseravelmente resumida no seguinte:
  1. A agenda das Reformas, a começar pela Reforma Política, Fiscal e Tributária;
  2. O Pacto Federativo e a questão da tributação em Mato Grosso do Sul;
  3. A questão do modelo e da estratégia de desenvolvimento do Estado;
  4. A efetividade dos serviços públicos de saúde, segurança, educação, etc, ou seja, de todos os serviços voltados para a manutenção do bem-estar e da paz das pessoas humanas e não humanas.
PARA ONDE VAMOS
Discutimos então as duas primeiras questões: a agenda das reformas constitucionais e o Pacto Federativo, restando ainda demonstrar o quanto são frágeis e ilusórias as discussões sobre o modelo de desenvolvimento e a efetividade dos serviços públicos.
Antes de prosseguir, uma nota de desagravo aos dois ou três amigos abnegados que se deram ao trabalho de ler esse texto, a começar pelo meu amigo-símbolo, o Zé. Ele notou e reclamou que o texto não possui estrutura simples, é longo demais e não tem compromisso com a clareza e concisão. Concordo, mas não quero mudar nada, porque dessa vez eu me permiti todas as transgressões das regras que a vida toda me interditaram a escrita, sem qualquer esperança de chegar a um resultado plausível e aplaudível.
Fui sempre um escrevedor de relatórios e arrumador de armários retóricos, fazendo aquilo que se pode chamar de “dourar a pílula” ou “enfeitar o pavão”. Dessa vez, portanto, mesmo que seja a última, não farei sequer uma revisão de conteúdo. Se houver contradições, asperezas, hiatos,  obscuridades, incongruências e defeitos de estilo, que permaneçam como surgiram, feias e sem retoques.
Ao cabo, pois, com essa tormenta.
MODELO DE DESENVOLVIMENTO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
É comum ouvir nos discursos políticos e nas músicas dos candidatos que a maior riqueza de Mato Grosso do Sul é o seu povo e a sua natureza. E isso é bem mais verdadeiro do que dizer que a maior riqueza deste Estado são as grandes empresas que aqui se instalam para explorar - e essa é uma expressão justíssima: explorar - os recursos naturais e o trabalho das pessoas que aqui vivem. Não se trata apenas, portanto, de avaliar o quanto cresceu o PIB, mas de aquilatar como essa riqueza foi distribuída, para onde foi canalizada e a que custos ambientais e sociais.
A primeira conclusão é óbvia: qualquer programa de estímulos fiscais ou creditícios e qualquer estratégia de produção deveria partir da contabilidade social subjacente a qualquer empreendimento, ou seja, do balanço judicioso das externalidades positivas e negativas geradas pelas atividades produtivas ou improdutivas. Sim, porque a depender desse balanço social, alguns recursos naturais poderiam valer muito mais para a sociedade pelo maior tempo em que permanecessem intocados. Isso também é uma obviedade que é tão aceita quanto ignorada.
Com essa premissa, teríamos já uma boa lista de projetos prioritários para o nosso desenvolvimento equilibrado, duradouro e justo, ou seja, numa palavrinha misteriosa: sustentável.
O primeiro desses projetos, ao que me consta, seria tornar o Estado de Mato Grosso do Sul o melhor lugar, o melhor ambiente possível para o desenvolvimento e a atração de talentos. Em vez de exportadores de talentos, deveríamos ser importadores desses talentos.
Para começar, a educação deveria ser diferenciada para as crianças segundo o potencial de cada uma, porque não há nenhuma fonte de riqueza mais importante e renovável do que o potencial das crianças. Formar seres humanos mais equilibrados e completos, mais felizes e realizados deveria ser a prioridade zero do nosso modelo de desenvolvimento.
Para isso, é claro, as escolas precisariam evoluir muito, para sair do estágio em que se prestam basicamente à promoção da mediocridade e chegar ao ponto em que se tornem o melhor ambiente para a realização do potencial de cada criança.
Um bom começo para essa transformação seria trazer para cá os melhores sucessores de Paulo Freire e levá-los a sério. Educadores, mestres de alta qualidade são essenciais para o processo de desenvolvimento. Não há escola sem mestres respeitados e amados.
A segunda medida seria estimular convenientemente os pesquisadores que já atuam no Estado e atrair muitos mais, oferecendo-lhes condições de vida e trabalho que não encontrariam em nenhum outro lugar, a começar por excelente remuneração vinculada a produtividade e por investimentos em laboratórios e equipamentos voltados para as potencialidades do Estado. Ou seja, ciência e tecnologia voltados para as pessoas e para o patrimônio natural, e somente depois disso, então, voltados para as atividades econômicas que mais contribuam para o maior desenvolvimento das pessoas e para a melhor conservação do patrimônio natural.
Está dada a principal diretriz. Não é preciso citar outros exemplos de projetos similares. O que foi dito é suficiente para perceber que não basta atrair grandes empreendimentos, como tem sido a tônica nas últimas décadas: grandes empreendimentos, sim, mas escolhidos de acordo com a contabilidade do seu legado para a atual e para as futuras gerações.
Aqui entramos numa consideração ligeira sobre a estratégia de suporte ao modelo predominante nos Estados brasileiros: a renúncia fiscal ilegal com o ICMS como forma de atrair grandes empresas. Deixando de lado o já decantado pendor da federação brasileira para o esbulho constitucional, essa estratégia merece reparos também pela inadequação do instrumento.
Lembremos que o ICMS é um imposto imaginado para ser neutro em relação ao sistema de preços e em relação às decisões alocativas dos agentes econômicos, neutralidade que seria garantida pela não-cumulatividade, pela uniformidade das alíquotas e pela limitação estrita à concessão de benefícios e incentivos fiscais (o processo pelo qual os estados detonaram o perfil constitucional do imposto foi referido no texto anterior).
Mas não apenas pela via da ofensa à Constituição os Estados erraram. Os erros de avaliação econômica foram ainda mais graves:
1 - o primeiro erro foi pensar que um Estado podia dar mais incentivos que o outro e abrir guerra fiscal com o propósito de assegurar vantagens competitivas às suas empresas em detrimento das suas concorrentes situadas em outros Estados;
2 - isso somente seria possível se os demais Estados fossem impedidos de conceder incentivos semelhantes ou maiores. É óbvio, portanto, que a guerra fiscal tende a se tornar um jogo de soma zero: todos os Estados concedem os mesmos incentivos, na medida certa para equilibrar o jogo competitivo e com isso os empresários voltam ao ponto inicial, ou seja: vão se instalar onde os fatores extrafiscais - e não apenas os incentivos fiscais - possam lhes assegurar maior competitividade. É por isso que os maiores empreendimentos que atraímos são justamente aqueles que querem usufruir das nossas vantagens naturais: terras melhores, muita água, mão de obra barata (ou seja, pobreza), infra-estrutura de transportes (como é o caso das ferrovias e hidrovias), a proximidade com o mercado consumidor, como é o caso da região Leste do Estado, conhecida como Bolsão, etc;
3 - o ônus do imposto renunciado continua a ser suportado pelos consumidores, entretanto, especialmente aquele decorrente do consumo interno do que é produzido pelas empresas incentivadas, ou seja, o imposto é cobrado, mas não mais pelo Estado e sim pelo empresário incentivado. Trata-se de uma transferência de renda direta dos mais pobres para os mais ricos. Esse consumo ocorreria de qualquer forma, então não vale dizer que se a empresa não fosse incentivada ela não existiria, nem a sua produção, nem imposto algum. Mesmo aceitando esse argumento sem nenhum reparo, o certo é que as pessoas que residem no Estado e aqui consomem qualquer produto incentivado estão pagando o imposto renunciado para o empresário;
4 - mas não para aí a conta do prejuízo: produção e consumo não geram apenas efeitos positivos (as externalidades positivas), mas produzem também o passivo social e ambiental (as externalidade negativas), a começar pelo lixo. No caso de tais passivos excederem às externalidades positivas estaremos realmente encrencados. O Estado deixou de receber pelo consumo de sua população, as demandas sobre os serviços públicos aumentaram no presente e ainda sobrou o custo da eventual degradação das condições sociais e ambientais para ser pago pelas próximas gerações e pelos próximos governos. E que ninguém venha dizer que o Estado pode planejar o seu desenvolvimento olhando apenas para o curto prazo. Os governos querem fazer isso, focados apenas no processo eleitoral, mas por isso essa prática é proibida pela Constituição e pelas leis. (Ôôpa! Mas do que adianta ficar malhando esse ferro frio?);
5 - outro dado óbvio sobre a guerra fiscal é que, como em qualquer guerra, ganha quem tiver o maior exército e as armas mais poderosas. O que é isso em matéria de guerra fiscal? A pujança da economia. Ora, Mato Grosso do Sul corresponde, em termos fiscais, a um bairro da Grande São Paulo. Que guerra fiscal efetiva podemos fazer ao poderoso Estado de São Paulo? Somente a que eles permitem e toleram;
6 - Por último, vejamos o efeito da nossa renúncia fiscal para as atividades exportadoras. Nesse caso, embora não possamos dizer que teríamos o imposto dessas atividades caso elas não estivessem instaladas no Estado, o fato é que além das prováveis externalidades negativas geradas em valor maior do que as externalidades positivas (empregos, por exemplo), a riqueza extraída a partir dos recursos humanos e naturais será em sua maior parte remetida para fora do Estado, deixando aqui somente os salários pagos, o incremento das atividades nascidas no entorno desses empreendimentos e o valor dos insumos de produção adquiridos no próprio Estado. Os lucros vão embora. Um número chama a atenção. Um estudo realizado a partir do cruzamento do domicílio dos estabelecimentos agropecuários do Estado com o domicílio dos seus titulares pessoas físicas, mostra que algo próximo a 60% de todas as terras e de toda a produção pertence a titulares residentes em outros Estados. Qual será então o valor da riqueza internalizada por esses empreendimentos, apesar do crescimento do PIB? Isso também é algo a ser contabilizado no balanço das externalidades.
Essas considerações mostram também uma outra faceta do erro da estratégia econômica adotada para aumentar a competitividade do Estado. Ora, vimos no Capítulo II que embora a arrecadação do ICMS venha crescendo pelo fato de que as grandes empresas do País tenham concentrado a tributação e o recolhimento do imposto, quem realmente suporta o ônus dessa tributação são os consumidores residentes no Estado, ou seja, a vasta gama de pequenos negócios formais ou informais e as pessoas físicas. E o que acontece com essa gente? Quanto mais o sistema econômico gera concentração de faturamento e renda, menos competitivos são os pequenos negócios e mais difícil torna-se a vida dos consumidores pessoas físicas, fato mais do que evidenciado pela taxa de mortalidade dos pequenos negócios e pelas levas de comerciantes-formiga que precisam deslocar-se para fazer compras em São Paulo ou nas fronteiras, tentando escapar da tributação e diversidade de produtos para revender.
O erro está em ignorar que a base econômica da tributação é composta principalmente pelos pequenos negócios, embora eles não apareçam como principais arrecadadores, pelo simples fato de que são eles que suportam o ônus econômico do imposto! Ora, qualquer política de incentivo à competividade deveria preocupar-se, primordialmente, com a prosperidade dos pequenos negócios, que empregam mais gente do que todos os grandes, internalizam tudo o que eles ganham e investem seus lucros dentro do Estado.
Voltando ao comércio-formiga: porque São Paulo é uma meca dos vendedores de bens de uso pessoal? Porque é mais barato. E é mais barato ir lá buscar coisas para revender porque a sonegação fiscal lá é infinitamente maior do que aqui. Ocorre que a economia de São Paulo é tão grande que os fornecedores da maioria dos artigos de bazar ou de 80% de todas as fantasias para festas do Brasil produzem e vendem na clandestinidade por lá, sem ser incomodados pelo crocodilo. E não dá para jogar pedras no Fisco de São Paulo: eles têm tantos contribuintes realmente muito grandes para cuidar que um pequeno contribuinte deles parece ser um gigante para nós.
E aí está uma reflexão tão necessária quanto surpreendente: o melhor caminho é formalizar todo mundo e cobrar de todos igualmente, na proporção dos seus faturamentos (como prevê a lei) ou deixar o laissez-faire instalar-se na camada cinzenta e cada vez mais obscura abaixo do nível alto de controle fiscal, mas viável apenas para os grandes contribuintes? A muitos pode parecer, inclusive, que o País vai bem, obrigado, mas não pela ação do Estado e muito menos pelo retorno social dos tributos cobrados à população, mas exatamente pelo contrário, ou seja: a habilidade enorme dos brasileiros, adquirida desde a Colônia, de driblar as leis e evitar os tributos do Rei. Nosso maior herói, não esqueçamos, pregava a sonegação! (E os heróis de outros paísem também, sejamos justos). Sendo assim, bastaria fazer vista grossa a essa grande camada cinzenta do espectro econômico e deixar a maior parte da base da tributação crescer como um bolo com o fermento dessa “renúncia fiscal” branca. Claro, porque as rendas dessa gente é capturada pelos grandes e aos grandes pode ser recolhida a quase totalidade da tributação. Seria essa uma faceta do segredo para a prosperidade de São Paulo? Que os liberais regozijem e tremam os estatistas. Aliás, aprendemos em 1989 que o confronto estatistas vs privatistas é mais falso do que nota de 13. O que importa mesmo é desprivatizar o Estado, ou seja, colocá-lo a serviço de finalidades publicas e evitar que o que é público seja capturado por interesses privados - pois mesmo que tudo seja estatal, se o Estado não for republicano e democrático, tudo estará privatizado.
Inclino-me de ofício para uma alternativa ao laissez-faire: acho que a melhor política para aumentar a competividade da economia estadual (no caso de MS) seria instituir um atendimento de excelência para todos os pequenos e micros negócios do Estado, visando principalmente conhecer os seus problemas e ajudá-los (muito mais do que o Sebrae é capaz de fazer trabalhando sozinho) a se tornar mais prósperos. Isso poderia ser feito separando todos os contribuintes do Estado por setores (ramos de negócio) e por segmentos (tamanhos dos negócios) e reunindo-os em câmaras setoriais regionais, de forma que a competividade de cada setor e de cada segmento pudesse ser determinada em comum acordo com os agentes econômicos envolvidos e a tributação pudesse ser graduada em ajuste fino com a necessidade de manutenção dos negócios existentes. Aliás, há uma lei estadual antiga e em vigor que prevê exatamente isso, mas nunca foi cumprida e ninguém quis defendê-la, mesmo porque, penso eu, a sociedade está viciada em burlar as leis e pouco determinada a cumpri-las.
Posso resumir? Então vai: valorizar o patrimônio humano e ambiental e manter o foco nos pequenos. Isso pode nem elevar o PIB e pode até diminuí-lo. Mas de quem será esse PIB menor e onde ele estará depositado, essa é a questão.
Mas porque essa discussão não caberia na campanha, mesmo que ela fosse limpa como uma fralda no varal? Porque as pessoas não acreditam nisso. Elas gostam dos grandes heróis, das grandes empresas, das grandes fortunas, dos grandes líderes, das coisas tidas como maiores do mundo em seu quintal e nunca acreditariam que o que elas já tem e o que elas sabem fazer para viver é toda a riqueza de que precisam. O que elas preferem precisa ser do tamanho do ego de cada um.
EFETIVIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
O serviço público é o espelho da sociedade e não apenas os políticos. Se temos uma sociedade de cordeiros, o serviço público será dominado por lobos rapaces. Se temos uma tradição de burla às leis, o complexo normativo se tornará um cipoal kafkiano que amargará a vida dos próprios burocratas. Se cultivamos a esperança de ser amigos do Rei para garantir vantagens sobre os nossos concidadãos menos afortunados, o serviço (qualquer que seja) será visto por prestadores e tomadores como favor do Rei que precisa ser pago pelos sortudos que são bem atendidos.
Essa cultura de cidadania passiva combinada com ineficiência sistêmica da gestão estão na base da inefetividade dos serviços públicos. Sobre cidadania passiva não há nada mais que dizer. Mas da ineficiência sistêmica, há muito que discutir, embora as discussões esbarrem no dique da passividade.
Antes de tudo convém realçar um aspecto quase invisível, mas de grande importância para a gestão no País: a desintegração horizontal e vertical da gestão. A desintegração horizontal pode ser entendida como a fragmentação excessiva dos investimentos e da organização de serviços que deveriam ser complementares e produzir resultados únicos, mas que em razão do corporativismo que domina a organização do Estado, dispersa investimentos e desconecta programas, projetos e ações que deveriam ser executados de forma integrada.
Avancemos agora com a muleta dos exemplos, que são inúmeros, tais como as metas de indicadores ótimos para a saúde. O aumento das internações hospitalares, do uso de remédios e o aumento crescente de demanda por médicos não são indicadores de mais saúde, mas de mais doenças. Ou seja, quanto mais é necessário investir em hospitais, remédios e médicos, mais provavelmente os indicadores de saúde serão piores. Porquê? Ora, os indicadores da saúde não dependem somente da excelência no tratamento das doenças, mas principalmente do não adoecimento da população. Saúde, portanto, depende de saneamento, de segurança, de alimentação, do clima, do meio ambiente saudável, de trabalho em ambientes saudáveis, de trânsito humanizado (os prontos-socorros estão abarrotados de motociclistas trumatizados), de paz nos lares, de educação. Mas como é possível juntar os esforços e os recursos orçamentários da área de saúde, controlada pela corporação dos médicos, com a empresa de saneamento, com a corporação dos professores, com a corporação da segurança, com a corporação dos assistentes sociais e com o pessoal dos governos que cuida da qualidade dos alimentos oferecidos para a população? Isso é mais difícil do que aprovar uma Reforma Tributária baseada no consenso entre os Estados, a União, os Municípios e os empresários. Só para ilustrar essa questão da saúde, um relatório recente da OMS alerta para a falência em longo prazo dos sistemas de saúde no mundo inteiro que poderá ser causada pela má alimentação das populações. Os Ministérios da Saúde vão advertir, as Secretarias de Saúde vão fazer campanhas de esclarecimento, mas nenhum projeto intersetorial cuja finalidade seja o não-adoecimento será conduzido de maneira conjunta pelas áreas envolvidas. Replique isso para todas as áreas e verá que os objetivos de efetividade de todas elas estão irremediavelmente prejudicados pela desintegração horizontal dos serviços públicos.
A desintegração vertical manifesta-se na replicação de esforços dos três niveis de governo. Também entre eles os projetos conjuntos são raros e já se ressentem da desintegração horizontal. É como se houvessem vários países: o País da Educação, o da Saúde, o da Segurança, o da Cultura, o do Saneamento, o da Infra-Estrutura e por aí vai. O cidadão comum mora em todos eles… mas ao mesmo tempo, nunca separadamente. A efetividade dos serviços públicos, do ponto de vista do cidadão é a qualidade de vida de sua família, nada menos. Se a educação é boa e não há transporte, os traficantes cercam a escola, não há emprego e não há saúde, o próprio objetivo da educação será comprometido.
A solução para isso tudo seria um orçamento unificado dos três níveis de governo e decidido no nível das comunidades, de baixo para cima, para ser executado por equipes intersetoriais. Mas isso esbarra em nossa cultura política. Como um povo servil pode acreditar num negócio desses? Mais ainda, quando será capaz de exigi-lo? Porque, se não disse ainda, chegou a hora: essa mudança de cultura não pode ser decretada e nem acontecerá em curto prazo. Logo, tudo isso como proposta de programa para o próximo mandato é bobagem, quimera, conversa fiada.
Essas desintegrações são responsáveis pela maior parte da ineficiência sistêmica dos serviços públicos, mas depois vem o resto das desventuras associadas a elas.
Primeiro que a agenda política está dominada pelas reivindicações corporativas de aumento das verbas vinculadas a cada área de atuação do Estado. E os candidatos embarcam nisso, porque também são como crocodilos. Tudo o que dá votos corporativos eles apoiam. Assim proliferam propostas como 10% do PIB para a educação, 1% do orçamento para a cultura, 1% para a ciência e tecnologia, a saúde quer um valor maior do que o da educação e por aí vai o manicômio federativo nessa balbúrdia onde todos disputam problemas e verbas para si, mas ninguém está realmente preocupado com a qualidade de vida do cidadão. Aumentar o gasto não significa melhoria real de nenhum dos serviços públicos, mas com certeza melhora as instalações, prédios e sistemas, aumenta o poder das corporações e perpetua a ineficiência sistêmica.
Filha dileta da fragmentação corporativa, engorda e cresce a burocracia, cuja única finalidade é aborrecer os cidadãos até que eles desistam de procurar o serviço público e se desinteressem mais ainda pela política.
Qualquer governo minimamente republicano deveria eleger como prioridade máxima simplificar a burocracia, eliminar normas inúteis, integrar os serviços, levar a excelência para a ponta do sistema, o balcão de atendimento.
Existem burocracias muito bem organizadas, como o Fisco, mas isso não chega até o cidadão. O atendimento é uma lástima.
Num Estado com tão pouca gente como Mato Grosso do Sul, os serviços públicos, todos eles, poderiam ser facilmente personalizados. Só para exemplificar o que isso significa, basta comparar com o atendimento dado por um grande banco, onde todos os clientes são reconhecidos no balcão por seu histórico de relações comerciais com a instituição. E os bancos ainda são péssimos para atender, mesmo porque eles também reproduzem a cultura nacional de tratar o cidadão como servo. O Estado de Mato Grosso do Sul poderia atender melhor do que qualquer banco atende aos seus clientes VIP. Qualquer assunto, qualquer demanda poderia ser atendida em qualquer repartição destinada ao atendimento, porque dentro delas poderia ter todos os sistemas de cada um dos serviços públicos. Imaginem um contribuinte pagando o seu imposto, matriculando o seu filho na escola e marcando uma consulta no mesmo lugar. Perfeitamente possível, é só interligar as redes.
E chega. Nem vou falar de desvios, porque isso é mera consequência do resto e esse assunto é o mais debatido e amassado na chafurdação geral. Mas acredito que o prejuízo maior para o Estado não provém disso. O maior de todos os prejuízos para o Estado decorre do desperdício de talentos dos servidores públicos. É fácil calcular. Se a folha é um dos maiores gastos e a efetividade do serviço é miseravelmente baixa, isso se deve à péssima gestão que é feita do pessoal.
Só para argumentar: imaginem uma empresa com a quantidade de trabalhadores e o valor da folha de um órgão público qualquer, dos mais eficientes; relacione a efetividade dos serviços prestados pelo órgão público com os rendimentos que a empresa precisa obter para não quebrar e a conclusão é inevitável: a má gestão do pessoal do serviço público equivaleria à falência de qualquer empresa.  
Acho que terminei. Mas ainda falta amarrar a evolução do título com as conclusões espalhadas pelo texto: fui candidato, fui eleito e agora renuncio ao cargo, porque o meu programa baseado em cumprir a lei é inadequado para a cultura política predominante, que vai precisar de um cataclismo ou de muito tempo para mudar.
Não vou assustá-los desnecessariamente, mas cataclismos já aconteceram. Entretanto, isso desborda o tema dessas eleições malucas perdidas nesse tempo medievo. Deixemos as explicações para quando os golfinhos quiserem falar. E eles falarão. Eles falarão.
Não resisto. O que fazer? Ouça todos os dias e de preferência cante junto aquela música dos Titãs, Comida: “Bebida é água / Comida é pasto / Você precisa de quê? / Você tem fome de quê?”