domingo, 3 de dezembro de 2017

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA SIGNIFICA APROFUNDAR O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO

O Brasil é um dos maiores países do mundo, com enormes potenciais, que se acham imersos em grande diversidade e muitas camadas de desigualdades. Um desafio supremo para uma gestão uniforme, integrada e efetiva. Uniforme e integrada para reunir todas as áreas das três esferas de governo em ações comuns e voltadas para pessoas reais que possam avaliá-las depois por sua efetividade.
Mas os desafios começam pelo fato de que o Brasil é uma Federação outorgada pelo Poder Central. Por isso já nasceu macrocéfala, com a cabeça maior que o corpo. Tanto em termos de concentração financeira, quanto em termos da concentração política, do poder decisório.
A concentração financeira não é mais um problema importante, porque transações financeiras online podem ser feitas de qualquer lugar e de qualquer titularidade, por meio dos sistemas integrados de circulação das moedas, que se tornam cada vez menos físicas. Assim, independente do que se arrecada e onde se arrecada a qualquer título, a distribuição dos recursos pode ser automática. Tanto faz quem está arrecadando os recursos, o que importa é que o sistema tributário seja equitativo e o pacto de sua distribuição atenda às demandas da sociedade. Ou seja, não basta mais território e população como critérios: é preciso também conhecer melhor os problemas das comunidades e interagir com elas para compor um pacto federativo dinâmico e aderente às transformações da sociedade, e não apenas um pacto imposto top down como resultado do acordo do estamento político.
Mas se a concentração financeira é um problema secundário, o mesmo não se pode dizer sobre os seus (d)efeitos sobre a gestão efetiva dos recursos do País, estes gerados em decorrência da concentração política, tradicional desde o Império, expressa pela concentração do poder de determinar quanto, como, quando e onde aplicar os recursos a partir do Governo Central, que num país continental dificilmente poderia interagir com as comunidades e muito menos compreender as peculiaridades locais.
Mas há outras camadas dessa concentração de poder: além da alocação dos recursos ser decidida pelo Poder Central, por meio de políticas públicas estabelecidas por leis de caráter nacional, feitas sob forte inflexão corporativa, a alocação dos recursos das principais áreas de atenção dos governos regionais e locais (saúde e educação, especialmente) são decididas a priori, por meio da vinculação constitucional e legal da aplicação de percentuais da receita em determinados itens da despesa, mas não necessariamente vinculados a indicadores de resultados efetivos, o que denuncia a predominância política da agenda corporativa, sempre atraindo mais recursos para os gastos com pessoal.
Isso diminui o interesse dos governos regionais e locais em planejamento e gestão voltados para efetividade, porque estão empenhados em saber como obter “dinheiro novo” para “realizar coisas novas”, deixando de lado o que já está funcionando, mas não gera dividendos políticos; pelo contrário, saúde, segurança e educação são geralmente fontes de reclamações, não importa quanto se aumente o gasto nessas áreas.
Enquanto a gestão empaca, os governos querem sobreviver politicamente aos seus mandatos e por isso se esforçam prioritariamente em liberar recursos para cumprir promessas que geralmente estão descoladas da realidade fiscal. Isso é feito basicamente deixando de pagar as dívidas antigas e de preferência realizando novas dívidas, perpetuando o desequilíbrio fiscal.
As despesas crescem vegetativamente, mas o crescimento da receita depende da economia. A dívida cresce porque ninguém quer fazer esforço para pagá-la e o financiamento do déficit fiscal aumenta os juros, gerando aumento explosivo da dívida e travando o investimento e o consumo. Trata-se de um círculo vicioso.
O mais grave de toda essa crise estrutural é que as políticas de vinculações de gastos com salários aumentam a folha, mas não convertem esse investimento em capital social, logo, também não, em efetividade, por deficiência na gestão das pessoas. Em lugar nenhum se desperdiça mais talento do que no serviço público e o tímido investimento em inovação não consegue alavancar o desenvolvimento institucional.
O aparelho de estado se torna, assim, um estorvo para sociedade, uma dívida crescente para as futuras gerações, dívida essa que começa a fazer parte de sua estrutura, eternizando os problemas que deveria resolver.
Com eleições a cada dois anos, os governantes tentam, no primeiro ano, fazer algum ajuste no gasto que lhe permita poupar o suficiente para realizar qualquer coisa que garanta propaganda para enfrentar as eleições do segundo ano e aumentar o poder dos seus aliados, o que provavelmente começará a sacrificar os credores. No terceiro e quarto anos tudo será feito para contrair novas dívidas, aumentar os tributos (mas não necessariamente a eficiência e muito menos a equidade da tributação) e gerar recursos para alavancar a reeleição. O resultado disso é o desprezo absoluto pelo planejamento de longo prazo.
Sem entrar no mérito das causas do déficit da previdência e da alocação melhor ou pior dos recursos da seguridade social (ou seja, da soma das fontes de recursos da saúde, da assistência e da previdência), o que importa é saber que há cada vez menos trabalhadores jovens entrando no mercado para custear o número crescente dos aposentados, por conta do aumento da expectativa de vida da população e por conta da mudança no perfil dos empregos cada vez mais seletivos para os jovens. O fato é que o déficit previdenciário impacta o caixa na medida em que as contribuições não são suficientes para pagar os aposentados e pensionistas, muito menos suficientes para criar reservas que possam garantir as aposentadorias futuras.
A conjugação de todos os desafios já citados reflete-se em algo que poderia ser chamado de “ineficiência sistêmica”, o que significa, em resumo, que mesmo quando tudo seja feito dentro do marco legal, a possibilidade de obter resultados efetivos é mínima e a possibilidade de que sejam desperdiçados recursos é máxima. Ou seja, o sistema de gestão colapsa antes que qualquer ação possa tornar-se efetiva. São exemplos disso o hospital que não tem equipamentos, os equipamentos que não têm instalação física, a infraestrutura que não tem manutenção, ou quando, enfim, ocorre de ter todos os recursos materiais, mas de não ter pessoal qualificado, nem mesmo pagando mais do que o mercado.
A ineficiência sistêmica, no caso em que tudo é feito de acordo com as normas, sem desvios, mas também sem efetividade, configura o que é moralmente inaceitável: o sistema simplesmente não funciona.
E o diagnóstico é: não basta ter gestão eficiente. Para que seja efetiva é preciso que seja democrática. Ouso propor a equação: quanto mais democrático o processo, mais efetivo o resultado. E essa constatação indica claramente que a solução de todos esses problemas deverá ser resultado de uma inversão política no processo de planejamento e gestão, tirando uma parte considerável do poder do aparato central do Estado e dando esse poder às comunidades e aos governos locais, para decidir melhor como, onde, quanto e quando aplicar o orçamento da Nação a partir da Cidade.
Entretanto, há um primeiro passo a ser dado: nada será muito efetivo enquanto a capacidade de gestão for tão desigual. É preciso encarar e resolver o problema da não-uniformidade do desenvolvimento institucional.
A gestão pública avançou bastante e de maneira mais uniforme nos últimos trinta anos em termos de tecnologia, mas avançou pouco e muito desigualmente em termos de capacidade gerencial, em que pese todo o esforço feito nesse sentido nos últimos 50 anos.
Junto ao esforço de uniformizar o desenvolvimento institucional dos entes federativos, será preciso enfrentar o problema da não-integração (ou desintegração) (vertical e horizontal) da gestão dos recursos financeiros, a começar pela alocação desses recursos, ou seja, pelo planejamento, especialmente pelo planejamento normativo de médio prazo, o PPA, que pode ser feito por meio de programas desenhados para juntar recursos vinculados de várias áreas (integração horizontal) e de mais de uma esfera de governo (integração vertical), além das parcerias com a sociedade (integração público-privado).
Ora, do ponto de vista de qualquer um dos governos das três esferas, o conjunto dos problemas de uma comunidade de qualquer município do País é uma responsabilidade comum, mesmo que haja a tentativa de dividi-los por áreas e esferas de iniciativa. Mais ainda, os recursos para o financiamento de políticas que buscam a solução desses problemas precisa ser e sempre será compartilhado por todos em alguma medida.
Do ponto de vista dos cidadãos de uma comunidade qualquer do País, especialmente, não há sentido em separar o que deve ser resolvido em cada esfera de governo, ou por cada órgão especializado de uma dessas esferas. O Brasil todo é ali. Se não há solução, a culpa é do Estado brasileiro e de todos os mandatários.
A integração vertical e horizontal, portanto, não é uma ideia exótica da qual as pessoas precisem ser convencidas e esclarecidas: é um senso comum.
Para resumir de modo que qualquer pessoa entenda quando for às ruas protestar, trata-se de construir uma sociedade onde promessas de campanha e discursos políticos sejam levados a sério e sejam efetivamente cobrados pela sociedade e pelos órgãos institucionais de controle.
A saída é o processo de democratização. Não obstante, parece que a maioria dos eleitores ainda prefere soluções autocráticas. É devagar também.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

O “MELHOR PREÇO” É O MELHOR PARA TODOS.

Acredite ou não, há boas notícias vindas até do Fisco estadual. Não pense que eu sou pessimista, é exatamente o contrário: eu acredito numa administração fiscal equitativa e ancorada em dois pilares: 1) jamais afetar a competitividade da economia artificialmente; e 2) jamais deixar que a necessidade de receitas exceda a capacidade contributiva da base econômica da tributação. Isso é possível? Perfeitamente possível. As pessoas que cuidam de suas famílias fazem isso todos os dias.
Mas acontece que com o festival de infortúnios de toda espécie que as pessoas se acostumaram a colocar na conta das iniciativas dos governos de todos os níveis, parece uma piada de mau gosto dizer que há uma boa notícia produzida pelo Fisco, mesmo que seja pequenina, mas neste caso, finalmente, é verdade!
E tem mais, a notícia é muito boa mesmo! Em quarenta anos convivendo com a Fazenda Pública dos dois lados do balcão, já vi muitas coisas boas acontecerem (sem que ninguém delas tivesse conhecimento, infelizmente!), mas um acontecimento desses, do qual todas as pessoas que usam smartphone ou computador podem se beneficiar, isso eu nunca vi!
Nessa altura você já descobriu! É isso mesmo, um aplicativo para celulares e computadores que informa, com atualização a cada quinze minutos, o melhor preço numa região que você pode definir a partir de sua localização, de qualquer produto especificado numa nota fiscal eletrônica ou documento fiscal eletrônico equivalente.
Essa inovação chama-se “Melhor Preço MS” e vem na esteira do seu similar “Menor Preço”, instituído com sucesso no Paraná. Melhor preço porquê? Porque o aplicativo não informa o menor entre todos os preços, apenas o menor preço praticado na área pesquisada e constante na base de documentos fiscais eletrônicos da SEFAZ-MS. O preço informado, então, é o melhor preço para aquele usuário, dentro de suas possibilidades de deslocamento.
A ideia é tão boa que já se tornou recomendação do programa nacional de modernização dos fiscos estaduais, dirigida ao ENCAT (Encontro das Administrações Tributárias) para abranger todo o território nacional. Ora, esse programa de modernização já acontece há mais de vinte anos e consumiu centenas de milhões de dólares em investimentos nas fazendas públicas estaduais e mais o trabalho de gerações de equipes dedicadas e otimistas com a possibilidade de fazer mais com menos e devolver à sociedade parte dos recursos investidos, na forma de bons serviços, com o bônus de melhorar a imagem e as relações entre o Fisco e a sociedade, que nunca foram baseadas em confiança e colaboração.
O Melhor Preço está saindo agora, mas o esforço realizado para que ele pudesse finalmente vir a lume foi gigantesco. Para que se tenha uma ideia: no início dos anos 90 a arrecadação total do mês anterior era conhecida somente um mês depois, após a conferência manual de cada guia de recolhimento; não existia nenhum computador pessoal na SEFAZ, e, portanto, nenhum relatório gerencial que permitisse saber, por exemplo, quanto era o valor real (e não apenas nominal) da receita tributária, porque a inflação era tão alta que os valores históricos nada significavam; os saldos das contas bancárias eram controlados numa planilha de papel por um heroico servidor que passava o dia inteiro tentando “fechar” o número final e nunca podia terminar aquele trabalho, porque a quantidade de transações não cabiam no tempo livre para lançá-las em papel; e assim também a inadimplência e a sonegação dependiam, para ser detectadas, de uma visita presencial de um agente do fisco ao estabelecimento do contribuinte, para ali conferir um por um os papéis a partir dos quais se fazia a apuração do imposto devido.
Nos últimos trinta anos, a tecnologia de processamento da informação deu um salto de séculos, o equivalente à reinvenção da escrita… e da própria leitura! Do ponto de vista dos controles do fisco estadual, que é o nosso caso aqui, a mudança é tão grande que mesmo quem está dentro da estrutura tem dificuldade para enxergar (como a formiga não vê a montanha em que habita), mas significa em termos práticos que todas as transações necessárias para completar totalmente o ciclo de vida da relação jurídico tributária podem ser conhecidas e processadas no mesmo momento em que acontecem, o que levou o ICMS a uma metamorfose em sua genética original: de um imposto que só poderia ser apurado e pago por iniciativa do contribuinte, após ocorrido o fato gerador (venda), cabendo ao Fisco apenas homologar o procedimento no prazo de cinco anos, passou a ser lançado de ofício e cobrado imediatamente, via nota fiscal eletrônica emitida no Estado de origem, por todas as incidências futuras até o consumo final, tão logo seja detectada uma compra de mercadoria para revenda ou consumo ou ativo fixo, realizada pelo contribuinte inscrito ou pelo consumidor pessoa física. Ou seja, escolhe-se o momento ideal para estabelecer a incidência e arrecadação do imposto e substitui-se todos os outros agentes que interferem na cadeia de circulação, minimizando a quase nada aquele trabalho enorme de conferir toda a papelada de todos os agentes da cadeia de circulação. Assim, a fiscalização de todas as transações, sejam compras, vendas, recebimentos ou pagamentos pode ser feita mediante o cruzamento em tempo real de todas elas, por meio de programas que “caçam” desvios nos padrões esperados no mar de informações.
Foram muitas mudanças, de fato. Tantas e tão rápidas que muitas pessoas ainda se recusam a assimilar o que aconteceu. E essa história vem a calhar a respeito de algumas críticas que se ouviram do aplicativo “Melhor Preço”.
Para começar, há um certo espanto do próprio Fisco com a ideia de fornecer qualquer informação, já que ele se acostumou somente a receber, exigir e esconder toda a informação sobre tudo o que que caia na sua malha.
Mas também entre os contribuintes consultados surgiram alguns questionamentos, dos quais os dois principais são:
1)      O preço praticado pelo comerciante não seria uma informação privada, um trunfo legítimo que ele pode usar no jogo do comércio para negociar com o seu cliente, sendo sua escolha livre vender mais barato para um (que pague em dinheiro, por exemplo) e mais caro para outro (que queira pagar com cartão de crédito), numa transação mais onerosa para o comerciante?
2)      O preço efetivo da transação informada ao Fisco no documento fiscal eletrônico não estaria sujeito ao sigilo fiscal?
Do ponto de vista do consumidor, que somos todos, a resposta é uma só: não e não!
Ora, para começo de conversa, nenhum interesse particular pode sobrelevar-se ao interesse público, a não ser que coloque em risco a vida, a integridade física e moral e o patrimônio da pessoa… física. Já a pessoa jurídica, como se sabe, sofre restrições muito maiores quanto ao seu patrimônio. Já porque o Fisco (de todas as esferas) constitui-se no sócio majoritário de todos os negócios. É só fazer as contas: se 30% de todo o patrimônio converte-se em tributos e outros encargos não tributários, porém obrigatórios e sem contrapartida, que são impostos a partir do poder do Estado, sobra 70% do patrimônio para ser distribuído entre trabalhadores, fornecedores, financiadores (juros), contingências (riscos), depreciações e amortizações. Só depois disso começa o patrimônio do empresário e seus outros sócios. Dá para afirmar, sem sobroço: nada é mais público do que uma empresa que cumpre todas as leis do País. E o contrário torna-se uma verdade horrível: nada é mais privado do que o Estado quando age em conluio com empresas para lesar a população!
Mas os pragmáticos que infestam a praça hão de protestar: as empresas estão numa batalha de sobrevivência! É preciso que se deixe a elas um cotoco de espada para pelear. Consumidores e comerciante que se hajam o melhor que puderem sem a intervenção do Estado! Etc.
Não procede o argumento, se queremos avançar o patamar civilizatório, em vez de regredir às trevas. A boa-fé deve presidir todos os negócios, públicos e particulares, estatais ou privados, e fora desse princípio informador do sistema jurídico só nos resta a barbárie, o engodo, o espúrio, o inconfessável, o que não resiste à publicidade e à transparência. Sendo assim, o preço efetivo das transações é muito mais público do que privado.
A transparência, por outro lado, inicia e acelera o ciclo virtuoso que pode nos levar para a sustentabilidade do processo de desenvolvimento, ou seja, mais colaboração comunitária, mais confiança, mais capital social, mais democracia. Como modo de vida, como modo de negociar. Como modo de solucionar conflitos.
Sobre sigilo fiscal nem é preciso argumentar, tão pedestre a alegação. Como pode ser sigilo fiscal o que se anuncia nos folhetos, nas placas em frente às lojas, nos sites de busca da Internet, nos alto-falantes, na televisão? A não ser, e isso é terrível admitir, que tudo seja feito apenas para enganar o consumidor.
Para terminar, defendamos o título: o Melhor Preço é o melhor para todos, porque, sucintamente:
a)      Ajuda o Fisco, na medida em que os preços lançados nas notas fiscais serão “cobrados” em sua exatidão também por todos os consumidores e não só pela fiscalização tributária. Isso também dá suporte mais realista para a fixação dos preços da pauta de referência fiscal, que historicamente vem sendo “esquecidos” quando estão altos e reajustados rapidamente quando estão baixos, gerando tributação desconforme a regra constitucional de que a base de cálculo é o preço efetivamente praticado;
b)      Interessa muito aos comerciantes que estão dispostos a enfrentar sua concorrência, porque o aplicativo Melhor Preço será sua propaganda gratuita e acreditada mediante chancela oficial, aumentando a confiança do consumidor. Entretanto, se um comerciante não pode praticar preços competitivos, a desinformação e a interferência do Estado (por omissão ou por ação) nunca será a melhor solução para o seu problema. Livre mercado só é verdadeiramente livre quando há transparência em todas as transações;
c)      Para o consumidor, que somos todos nós, nem há o que argumentar. Basta pensar na correria dos pais e mães em busca do melhor preço para adquirir material escolar na volta às aulas, entre tantos outros exemplos dramáticos;
d)     Para os desenvolvedores de serviços baseados na confiabilidade da informação sobre os preços, basta citar uma possibilidade: precificar uma lista de compras, realizar essas compras e entregar em domicílio. Calcule a economia marginal disso sobre o trânsito, sobre a redução de frustrações, sobre o emprego, etc.
Quanto tempo mais a SEFAZ vai adiar o lançamento do aplicativo Melhor Preço? Será necessária uma audiência pública para a qual se chamem todos os segmentos sociais interessados? Deputados, vereadores, lideranças sociais, OAB, democratas, estamos esperando o quê? Para sua informação, o aplicativo está pronto. Palmas antecipadas para o governo que teve a sorte de herdar todo o trabalho que possibilitou esse serviço sensacional.


José Carlos Gomes
Auditor Fiscal da Receita Estadual, aposentado
Advogado

sábado, 4 de outubro de 2014

Se eu renunciasse ao cargo de Governador de Mato Grosso do Sul

Parte III
ONDE ESTAMOS
Num tempo inventado qualquer, algumas décadas no futuro, começamos a discutir os temas que seriam plausíveis numa campanha eleitoral ideal para o Governo de Mato Grosso do Sul, já que a campanha propriamente dita não tinha conteúdo algum digno de nota, exceto as acusações assustadoras de lado a lado sobre as rapacidades recíprocas e as velhas promessas sem qualquer fundamentação quanto à viabilidade. E já não resisto a tergiversar: se a questão é escolher entre quem desvia mais ou menos dinheiro público, seja lá por quais motivos (inclusive justos, mas nunca legais) então o critério de escolha dos nossos candidatos deveria ser: qual a reação esperada de cada um deles no caso de serem acusados pela Justiça? Imagine quem ficaria envergonhado e vote nele. Mas se imaginar que a reação do gatuno ainda será de orgulho e pompa diante do ilícito que cometeu, então fuja dele.
Nesse tempo inventado, qualquer um poderia ser candidato ao governo e não precisaria nem de prestígio, nem de dinheiro, muito menos de chancela de qualquer partido. E assim eu também fui candidato, declarando apenas que me comprometia a cumprir serenamente as leis. Isso fez todo sentido, nessa sociedade imaginária, porque a maioria das pessoas se importavam com o bem público antes e acima do interesse particular.
O interesse público, por sua vez, já estava suficientemente regulado pelas leis. Pois tudo estava e ainda está escrito nas leis: o quanto deve ser aplicado em cada política pública e como deve ser aplicado, os grandes objetivos do Estado, as diretrizes a ser seguidas e até mesmo os critérios para medir os resultados.
Logo, não era necessário que alguém se apresentasse com um diagnóstico crítico (porque até isso também está nas leis, especialmente nos seus considerandos), uma lista bem organizada de soluções e um programa que deveria ser seguido pelo governo, já que temos um excelente programa de governo escrito na própria Constituição do País.
O que é necessário então para um governante além da pacífica aceitação das leis? E se, mais ainda, cumprir as leis é o juramento básico de todos os servidores públicos? E nessa toada cheguei a tantas outras conclusões, a saber:
  1. que o governador não precisa ser um bom gestor, basta que ele seja um político amador e é especialmente recomendado que ele não seja, de modo algum, um político profissional! Ou seja, a política é para os amadores (em duplo sentido: para os que amam o próximo e amam a política, mas não fazem disso um modo de adquirir fama, prestígio e dinheiro) e a gestão é para os profissionais;
  2. dessa primeira conclusão surge outra, que o melhor governador não é o que manda muito, sabe tudo e faz tudo sozinho, mas o modesto, que sabe pouco, reconhece que é um ignorante e escolhe por isso os melhores profissionais para tomar conta da gestão e praticar os atos necessários ao bom andamento das extensas e complexas responsabilidades do Estado. O seu papel, como primeiro dos cidadãos, é juntar-se a tantos outros cidadãos também interessados no bem comum e dedicar-se todos os dias a verificar a retidão dos atos e os resultados efetivos do trabalho dos profissionais contratados temporariamente para cuidar da execução orçamentária;
  3. por fim, que o mandato de um governador não precisa ser de cinco anos, nem de quatro anos, bastariam no máximo dois anos de dedicação desinteressada ao bem comum e ele já poderia voltar, com pleno direito e merecidas honrarias aos seus afazeres particulares, sem precisar nunca mais candidatar-se a coisa alguma, já que isso decididamente não lhe traria qualquer vantagem pessoal.
Mas nesse ponto da jornada e sabendo que a cultura política dos concidadãos ainda estava contaminada pelo caos dos tempos em que a nossa Constituição ainda era diariamente conspurcada por atitudes nada democráticas e muito menos republicanas dos governantes, porque não dá parra arrancar de repente todas as ideias falsas que as pessoas acumularam em suas memórias, propus-me a imaginar o que seria então uma agenda de debates mais adequada a essa “realidade” na qual a bagunça institucional imperava.
Tal agenda, permitam-me repetir pela terceira vez, poderia ser miseravelmente resumida no seguinte:
  1. A agenda das Reformas, a começar pela Reforma Política, Fiscal e Tributária;
  2. O Pacto Federativo e a questão da tributação em Mato Grosso do Sul;
  3. A questão do modelo e da estratégia de desenvolvimento do Estado;
  4. A efetividade dos serviços públicos de saúde, segurança, educação, etc, ou seja, de todos os serviços voltados para a manutenção do bem-estar e da paz das pessoas humanas e não humanas.
PARA ONDE VAMOS
Discutimos então as duas primeiras questões: a agenda das reformas constitucionais e o Pacto Federativo, restando ainda demonstrar o quanto são frágeis e ilusórias as discussões sobre o modelo de desenvolvimento e a efetividade dos serviços públicos.
Antes de prosseguir, uma nota de desagravo aos dois ou três amigos abnegados que se deram ao trabalho de ler esse texto, a começar pelo meu amigo-símbolo, o Zé. Ele notou e reclamou que o texto não possui estrutura simples, é longo demais e não tem compromisso com a clareza e concisão. Concordo, mas não quero mudar nada, porque dessa vez eu me permiti todas as transgressões das regras que a vida toda me interditaram a escrita, sem qualquer esperança de chegar a um resultado plausível e aplaudível.
Fui sempre um escrevedor de relatórios e arrumador de armários retóricos, fazendo aquilo que se pode chamar de “dourar a pílula” ou “enfeitar o pavão”. Dessa vez, portanto, mesmo que seja a última, não farei sequer uma revisão de conteúdo. Se houver contradições, asperezas, hiatos,  obscuridades, incongruências e defeitos de estilo, que permaneçam como surgiram, feias e sem retoques.
Ao cabo, pois, com essa tormenta.
MODELO DE DESENVOLVIMENTO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
É comum ouvir nos discursos políticos e nas músicas dos candidatos que a maior riqueza de Mato Grosso do Sul é o seu povo e a sua natureza. E isso é bem mais verdadeiro do que dizer que a maior riqueza deste Estado são as grandes empresas que aqui se instalam para explorar - e essa é uma expressão justíssima: explorar - os recursos naturais e o trabalho das pessoas que aqui vivem. Não se trata apenas, portanto, de avaliar o quanto cresceu o PIB, mas de aquilatar como essa riqueza foi distribuída, para onde foi canalizada e a que custos ambientais e sociais.
A primeira conclusão é óbvia: qualquer programa de estímulos fiscais ou creditícios e qualquer estratégia de produção deveria partir da contabilidade social subjacente a qualquer empreendimento, ou seja, do balanço judicioso das externalidades positivas e negativas geradas pelas atividades produtivas ou improdutivas. Sim, porque a depender desse balanço social, alguns recursos naturais poderiam valer muito mais para a sociedade pelo maior tempo em que permanecessem intocados. Isso também é uma obviedade que é tão aceita quanto ignorada.
Com essa premissa, teríamos já uma boa lista de projetos prioritários para o nosso desenvolvimento equilibrado, duradouro e justo, ou seja, numa palavrinha misteriosa: sustentável.
O primeiro desses projetos, ao que me consta, seria tornar o Estado de Mato Grosso do Sul o melhor lugar, o melhor ambiente possível para o desenvolvimento e a atração de talentos. Em vez de exportadores de talentos, deveríamos ser importadores desses talentos.
Para começar, a educação deveria ser diferenciada para as crianças segundo o potencial de cada uma, porque não há nenhuma fonte de riqueza mais importante e renovável do que o potencial das crianças. Formar seres humanos mais equilibrados e completos, mais felizes e realizados deveria ser a prioridade zero do nosso modelo de desenvolvimento.
Para isso, é claro, as escolas precisariam evoluir muito, para sair do estágio em que se prestam basicamente à promoção da mediocridade e chegar ao ponto em que se tornem o melhor ambiente para a realização do potencial de cada criança.
Um bom começo para essa transformação seria trazer para cá os melhores sucessores de Paulo Freire e levá-los a sério. Educadores, mestres de alta qualidade são essenciais para o processo de desenvolvimento. Não há escola sem mestres respeitados e amados.
A segunda medida seria estimular convenientemente os pesquisadores que já atuam no Estado e atrair muitos mais, oferecendo-lhes condições de vida e trabalho que não encontrariam em nenhum outro lugar, a começar por excelente remuneração vinculada a produtividade e por investimentos em laboratórios e equipamentos voltados para as potencialidades do Estado. Ou seja, ciência e tecnologia voltados para as pessoas e para o patrimônio natural, e somente depois disso, então, voltados para as atividades econômicas que mais contribuam para o maior desenvolvimento das pessoas e para a melhor conservação do patrimônio natural.
Está dada a principal diretriz. Não é preciso citar outros exemplos de projetos similares. O que foi dito é suficiente para perceber que não basta atrair grandes empreendimentos, como tem sido a tônica nas últimas décadas: grandes empreendimentos, sim, mas escolhidos de acordo com a contabilidade do seu legado para a atual e para as futuras gerações.
Aqui entramos numa consideração ligeira sobre a estratégia de suporte ao modelo predominante nos Estados brasileiros: a renúncia fiscal ilegal com o ICMS como forma de atrair grandes empresas. Deixando de lado o já decantado pendor da federação brasileira para o esbulho constitucional, essa estratégia merece reparos também pela inadequação do instrumento.
Lembremos que o ICMS é um imposto imaginado para ser neutro em relação ao sistema de preços e em relação às decisões alocativas dos agentes econômicos, neutralidade que seria garantida pela não-cumulatividade, pela uniformidade das alíquotas e pela limitação estrita à concessão de benefícios e incentivos fiscais (o processo pelo qual os estados detonaram o perfil constitucional do imposto foi referido no texto anterior).
Mas não apenas pela via da ofensa à Constituição os Estados erraram. Os erros de avaliação econômica foram ainda mais graves:
1 - o primeiro erro foi pensar que um Estado podia dar mais incentivos que o outro e abrir guerra fiscal com o propósito de assegurar vantagens competitivas às suas empresas em detrimento das suas concorrentes situadas em outros Estados;
2 - isso somente seria possível se os demais Estados fossem impedidos de conceder incentivos semelhantes ou maiores. É óbvio, portanto, que a guerra fiscal tende a se tornar um jogo de soma zero: todos os Estados concedem os mesmos incentivos, na medida certa para equilibrar o jogo competitivo e com isso os empresários voltam ao ponto inicial, ou seja: vão se instalar onde os fatores extrafiscais - e não apenas os incentivos fiscais - possam lhes assegurar maior competitividade. É por isso que os maiores empreendimentos que atraímos são justamente aqueles que querem usufruir das nossas vantagens naturais: terras melhores, muita água, mão de obra barata (ou seja, pobreza), infra-estrutura de transportes (como é o caso das ferrovias e hidrovias), a proximidade com o mercado consumidor, como é o caso da região Leste do Estado, conhecida como Bolsão, etc;
3 - o ônus do imposto renunciado continua a ser suportado pelos consumidores, entretanto, especialmente aquele decorrente do consumo interno do que é produzido pelas empresas incentivadas, ou seja, o imposto é cobrado, mas não mais pelo Estado e sim pelo empresário incentivado. Trata-se de uma transferência de renda direta dos mais pobres para os mais ricos. Esse consumo ocorreria de qualquer forma, então não vale dizer que se a empresa não fosse incentivada ela não existiria, nem a sua produção, nem imposto algum. Mesmo aceitando esse argumento sem nenhum reparo, o certo é que as pessoas que residem no Estado e aqui consomem qualquer produto incentivado estão pagando o imposto renunciado para o empresário;
4 - mas não para aí a conta do prejuízo: produção e consumo não geram apenas efeitos positivos (as externalidades positivas), mas produzem também o passivo social e ambiental (as externalidade negativas), a começar pelo lixo. No caso de tais passivos excederem às externalidades positivas estaremos realmente encrencados. O Estado deixou de receber pelo consumo de sua população, as demandas sobre os serviços públicos aumentaram no presente e ainda sobrou o custo da eventual degradação das condições sociais e ambientais para ser pago pelas próximas gerações e pelos próximos governos. E que ninguém venha dizer que o Estado pode planejar o seu desenvolvimento olhando apenas para o curto prazo. Os governos querem fazer isso, focados apenas no processo eleitoral, mas por isso essa prática é proibida pela Constituição e pelas leis. (Ôôpa! Mas do que adianta ficar malhando esse ferro frio?);
5 - outro dado óbvio sobre a guerra fiscal é que, como em qualquer guerra, ganha quem tiver o maior exército e as armas mais poderosas. O que é isso em matéria de guerra fiscal? A pujança da economia. Ora, Mato Grosso do Sul corresponde, em termos fiscais, a um bairro da Grande São Paulo. Que guerra fiscal efetiva podemos fazer ao poderoso Estado de São Paulo? Somente a que eles permitem e toleram;
6 - Por último, vejamos o efeito da nossa renúncia fiscal para as atividades exportadoras. Nesse caso, embora não possamos dizer que teríamos o imposto dessas atividades caso elas não estivessem instaladas no Estado, o fato é que além das prováveis externalidades negativas geradas em valor maior do que as externalidades positivas (empregos, por exemplo), a riqueza extraída a partir dos recursos humanos e naturais será em sua maior parte remetida para fora do Estado, deixando aqui somente os salários pagos, o incremento das atividades nascidas no entorno desses empreendimentos e o valor dos insumos de produção adquiridos no próprio Estado. Os lucros vão embora. Um número chama a atenção. Um estudo realizado a partir do cruzamento do domicílio dos estabelecimentos agropecuários do Estado com o domicílio dos seus titulares pessoas físicas, mostra que algo próximo a 60% de todas as terras e de toda a produção pertence a titulares residentes em outros Estados. Qual será então o valor da riqueza internalizada por esses empreendimentos, apesar do crescimento do PIB? Isso também é algo a ser contabilizado no balanço das externalidades.
Essas considerações mostram também uma outra faceta do erro da estratégia econômica adotada para aumentar a competitividade do Estado. Ora, vimos no Capítulo II que embora a arrecadação do ICMS venha crescendo pelo fato de que as grandes empresas do País tenham concentrado a tributação e o recolhimento do imposto, quem realmente suporta o ônus dessa tributação são os consumidores residentes no Estado, ou seja, a vasta gama de pequenos negócios formais ou informais e as pessoas físicas. E o que acontece com essa gente? Quanto mais o sistema econômico gera concentração de faturamento e renda, menos competitivos são os pequenos negócios e mais difícil torna-se a vida dos consumidores pessoas físicas, fato mais do que evidenciado pela taxa de mortalidade dos pequenos negócios e pelas levas de comerciantes-formiga que precisam deslocar-se para fazer compras em São Paulo ou nas fronteiras, tentando escapar da tributação e diversidade de produtos para revender.
O erro está em ignorar que a base econômica da tributação é composta principalmente pelos pequenos negócios, embora eles não apareçam como principais arrecadadores, pelo simples fato de que são eles que suportam o ônus econômico do imposto! Ora, qualquer política de incentivo à competividade deveria preocupar-se, primordialmente, com a prosperidade dos pequenos negócios, que empregam mais gente do que todos os grandes, internalizam tudo o que eles ganham e investem seus lucros dentro do Estado.
Voltando ao comércio-formiga: porque São Paulo é uma meca dos vendedores de bens de uso pessoal? Porque é mais barato. E é mais barato ir lá buscar coisas para revender porque a sonegação fiscal lá é infinitamente maior do que aqui. Ocorre que a economia de São Paulo é tão grande que os fornecedores da maioria dos artigos de bazar ou de 80% de todas as fantasias para festas do Brasil produzem e vendem na clandestinidade por lá, sem ser incomodados pelo crocodilo. E não dá para jogar pedras no Fisco de São Paulo: eles têm tantos contribuintes realmente muito grandes para cuidar que um pequeno contribuinte deles parece ser um gigante para nós.
E aí está uma reflexão tão necessária quanto surpreendente: o melhor caminho é formalizar todo mundo e cobrar de todos igualmente, na proporção dos seus faturamentos (como prevê a lei) ou deixar o laissez-faire instalar-se na camada cinzenta e cada vez mais obscura abaixo do nível alto de controle fiscal, mas viável apenas para os grandes contribuintes? A muitos pode parecer, inclusive, que o País vai bem, obrigado, mas não pela ação do Estado e muito menos pelo retorno social dos tributos cobrados à população, mas exatamente pelo contrário, ou seja: a habilidade enorme dos brasileiros, adquirida desde a Colônia, de driblar as leis e evitar os tributos do Rei. Nosso maior herói, não esqueçamos, pregava a sonegação! (E os heróis de outros paísem também, sejamos justos). Sendo assim, bastaria fazer vista grossa a essa grande camada cinzenta do espectro econômico e deixar a maior parte da base da tributação crescer como um bolo com o fermento dessa “renúncia fiscal” branca. Claro, porque as rendas dessa gente é capturada pelos grandes e aos grandes pode ser recolhida a quase totalidade da tributação. Seria essa uma faceta do segredo para a prosperidade de São Paulo? Que os liberais regozijem e tremam os estatistas. Aliás, aprendemos em 1989 que o confronto estatistas vs privatistas é mais falso do que nota de 13. O que importa mesmo é desprivatizar o Estado, ou seja, colocá-lo a serviço de finalidades publicas e evitar que o que é público seja capturado por interesses privados - pois mesmo que tudo seja estatal, se o Estado não for republicano e democrático, tudo estará privatizado.
Inclino-me de ofício para uma alternativa ao laissez-faire: acho que a melhor política para aumentar a competividade da economia estadual (no caso de MS) seria instituir um atendimento de excelência para todos os pequenos e micros negócios do Estado, visando principalmente conhecer os seus problemas e ajudá-los (muito mais do que o Sebrae é capaz de fazer trabalhando sozinho) a se tornar mais prósperos. Isso poderia ser feito separando todos os contribuintes do Estado por setores (ramos de negócio) e por segmentos (tamanhos dos negócios) e reunindo-os em câmaras setoriais regionais, de forma que a competividade de cada setor e de cada segmento pudesse ser determinada em comum acordo com os agentes econômicos envolvidos e a tributação pudesse ser graduada em ajuste fino com a necessidade de manutenção dos negócios existentes. Aliás, há uma lei estadual antiga e em vigor que prevê exatamente isso, mas nunca foi cumprida e ninguém quis defendê-la, mesmo porque, penso eu, a sociedade está viciada em burlar as leis e pouco determinada a cumpri-las.
Posso resumir? Então vai: valorizar o patrimônio humano e ambiental e manter o foco nos pequenos. Isso pode nem elevar o PIB e pode até diminuí-lo. Mas de quem será esse PIB menor e onde ele estará depositado, essa é a questão.
Mas porque essa discussão não caberia na campanha, mesmo que ela fosse limpa como uma fralda no varal? Porque as pessoas não acreditam nisso. Elas gostam dos grandes heróis, das grandes empresas, das grandes fortunas, dos grandes líderes, das coisas tidas como maiores do mundo em seu quintal e nunca acreditariam que o que elas já tem e o que elas sabem fazer para viver é toda a riqueza de que precisam. O que elas preferem precisa ser do tamanho do ego de cada um.
EFETIVIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
O serviço público é o espelho da sociedade e não apenas os políticos. Se temos uma sociedade de cordeiros, o serviço público será dominado por lobos rapaces. Se temos uma tradição de burla às leis, o complexo normativo se tornará um cipoal kafkiano que amargará a vida dos próprios burocratas. Se cultivamos a esperança de ser amigos do Rei para garantir vantagens sobre os nossos concidadãos menos afortunados, o serviço (qualquer que seja) será visto por prestadores e tomadores como favor do Rei que precisa ser pago pelos sortudos que são bem atendidos.
Essa cultura de cidadania passiva combinada com ineficiência sistêmica da gestão estão na base da inefetividade dos serviços públicos. Sobre cidadania passiva não há nada mais que dizer. Mas da ineficiência sistêmica, há muito que discutir, embora as discussões esbarrem no dique da passividade.
Antes de tudo convém realçar um aspecto quase invisível, mas de grande importância para a gestão no País: a desintegração horizontal e vertical da gestão. A desintegração horizontal pode ser entendida como a fragmentação excessiva dos investimentos e da organização de serviços que deveriam ser complementares e produzir resultados únicos, mas que em razão do corporativismo que domina a organização do Estado, dispersa investimentos e desconecta programas, projetos e ações que deveriam ser executados de forma integrada.
Avancemos agora com a muleta dos exemplos, que são inúmeros, tais como as metas de indicadores ótimos para a saúde. O aumento das internações hospitalares, do uso de remédios e o aumento crescente de demanda por médicos não são indicadores de mais saúde, mas de mais doenças. Ou seja, quanto mais é necessário investir em hospitais, remédios e médicos, mais provavelmente os indicadores de saúde serão piores. Porquê? Ora, os indicadores da saúde não dependem somente da excelência no tratamento das doenças, mas principalmente do não adoecimento da população. Saúde, portanto, depende de saneamento, de segurança, de alimentação, do clima, do meio ambiente saudável, de trabalho em ambientes saudáveis, de trânsito humanizado (os prontos-socorros estão abarrotados de motociclistas trumatizados), de paz nos lares, de educação. Mas como é possível juntar os esforços e os recursos orçamentários da área de saúde, controlada pela corporação dos médicos, com a empresa de saneamento, com a corporação dos professores, com a corporação da segurança, com a corporação dos assistentes sociais e com o pessoal dos governos que cuida da qualidade dos alimentos oferecidos para a população? Isso é mais difícil do que aprovar uma Reforma Tributária baseada no consenso entre os Estados, a União, os Municípios e os empresários. Só para ilustrar essa questão da saúde, um relatório recente da OMS alerta para a falência em longo prazo dos sistemas de saúde no mundo inteiro que poderá ser causada pela má alimentação das populações. Os Ministérios da Saúde vão advertir, as Secretarias de Saúde vão fazer campanhas de esclarecimento, mas nenhum projeto intersetorial cuja finalidade seja o não-adoecimento será conduzido de maneira conjunta pelas áreas envolvidas. Replique isso para todas as áreas e verá que os objetivos de efetividade de todas elas estão irremediavelmente prejudicados pela desintegração horizontal dos serviços públicos.
A desintegração vertical manifesta-se na replicação de esforços dos três niveis de governo. Também entre eles os projetos conjuntos são raros e já se ressentem da desintegração horizontal. É como se houvessem vários países: o País da Educação, o da Saúde, o da Segurança, o da Cultura, o do Saneamento, o da Infra-Estrutura e por aí vai. O cidadão comum mora em todos eles… mas ao mesmo tempo, nunca separadamente. A efetividade dos serviços públicos, do ponto de vista do cidadão é a qualidade de vida de sua família, nada menos. Se a educação é boa e não há transporte, os traficantes cercam a escola, não há emprego e não há saúde, o próprio objetivo da educação será comprometido.
A solução para isso tudo seria um orçamento unificado dos três níveis de governo e decidido no nível das comunidades, de baixo para cima, para ser executado por equipes intersetoriais. Mas isso esbarra em nossa cultura política. Como um povo servil pode acreditar num negócio desses? Mais ainda, quando será capaz de exigi-lo? Porque, se não disse ainda, chegou a hora: essa mudança de cultura não pode ser decretada e nem acontecerá em curto prazo. Logo, tudo isso como proposta de programa para o próximo mandato é bobagem, quimera, conversa fiada.
Essas desintegrações são responsáveis pela maior parte da ineficiência sistêmica dos serviços públicos, mas depois vem o resto das desventuras associadas a elas.
Primeiro que a agenda política está dominada pelas reivindicações corporativas de aumento das verbas vinculadas a cada área de atuação do Estado. E os candidatos embarcam nisso, porque também são como crocodilos. Tudo o que dá votos corporativos eles apoiam. Assim proliferam propostas como 10% do PIB para a educação, 1% do orçamento para a cultura, 1% para a ciência e tecnologia, a saúde quer um valor maior do que o da educação e por aí vai o manicômio federativo nessa balbúrdia onde todos disputam problemas e verbas para si, mas ninguém está realmente preocupado com a qualidade de vida do cidadão. Aumentar o gasto não significa melhoria real de nenhum dos serviços públicos, mas com certeza melhora as instalações, prédios e sistemas, aumenta o poder das corporações e perpetua a ineficiência sistêmica.
Filha dileta da fragmentação corporativa, engorda e cresce a burocracia, cuja única finalidade é aborrecer os cidadãos até que eles desistam de procurar o serviço público e se desinteressem mais ainda pela política.
Qualquer governo minimamente republicano deveria eleger como prioridade máxima simplificar a burocracia, eliminar normas inúteis, integrar os serviços, levar a excelência para a ponta do sistema, o balcão de atendimento.
Existem burocracias muito bem organizadas, como o Fisco, mas isso não chega até o cidadão. O atendimento é uma lástima.
Num Estado com tão pouca gente como Mato Grosso do Sul, os serviços públicos, todos eles, poderiam ser facilmente personalizados. Só para exemplificar o que isso significa, basta comparar com o atendimento dado por um grande banco, onde todos os clientes são reconhecidos no balcão por seu histórico de relações comerciais com a instituição. E os bancos ainda são péssimos para atender, mesmo porque eles também reproduzem a cultura nacional de tratar o cidadão como servo. O Estado de Mato Grosso do Sul poderia atender melhor do que qualquer banco atende aos seus clientes VIP. Qualquer assunto, qualquer demanda poderia ser atendida em qualquer repartição destinada ao atendimento, porque dentro delas poderia ter todos os sistemas de cada um dos serviços públicos. Imaginem um contribuinte pagando o seu imposto, matriculando o seu filho na escola e marcando uma consulta no mesmo lugar. Perfeitamente possível, é só interligar as redes.
E chega. Nem vou falar de desvios, porque isso é mera consequência do resto e esse assunto é o mais debatido e amassado na chafurdação geral. Mas acredito que o prejuízo maior para o Estado não provém disso. O maior de todos os prejuízos para o Estado decorre do desperdício de talentos dos servidores públicos. É fácil calcular. Se a folha é um dos maiores gastos e a efetividade do serviço é miseravelmente baixa, isso se deve à péssima gestão que é feita do pessoal.
Só para argumentar: imaginem uma empresa com a quantidade de trabalhadores e o valor da folha de um órgão público qualquer, dos mais eficientes; relacione a efetividade dos serviços prestados pelo órgão público com os rendimentos que a empresa precisa obter para não quebrar e a conclusão é inevitável: a má gestão do pessoal do serviço público equivaleria à falência de qualquer empresa.  
Acho que terminei. Mas ainda falta amarrar a evolução do título com as conclusões espalhadas pelo texto: fui candidato, fui eleito e agora renuncio ao cargo, porque o meu programa baseado em cumprir a lei é inadequado para a cultura política predominante, que vai precisar de um cataclismo ou de muito tempo para mudar.
Não vou assustá-los desnecessariamente, mas cataclismos já aconteceram. Entretanto, isso desborda o tema dessas eleições malucas perdidas nesse tempo medievo. Deixemos as explicações para quando os golfinhos quiserem falar. E eles falarão. Eles falarão.
Não resisto. O que fazer? Ouça todos os dias e de preferência cante junto aquela música dos Titãs, Comida: “Bebida é água / Comida é pasto / Você precisa de quê? / Você tem fome de quê?”

terça-feira, 23 de setembro de 2014

SE EU FOSSE GOVERNADOR DE MATO GROSSO DO SUL

Parte II
Prólogo
Para começo do segundo tempo, trata-se de saber como chegamos nessa enrascada. Querendo ser útil aos meus concidadãos neste transe eleitoral de 2014 (uma data qualquer que não significa nada, mas sobre a qual me obrigo a falar, porque os sul-mato-grossenses pensam que vivem nela) e não querendo ser engolfado na loucura geral que tomou conta da campanha, e o que seria muito pior, temendo ser confundido com qualquer um dos lados (pois de fato não existe nenhum lado), resolvi inventar uma estória assim:
a)     Que a história da qual nos lembramos, que a régua do tempo na qual nos medimos, que até mesmo o legado pessoal de memórias que nos define, tudo isso é uma ilusão, coisa inexistente em um mundo qualquer que possa ser chamado de real. Logo, qualquer coisa que possa ser dita nesse contexto seria apenas um barulho a mais, uma loucura a mais, uma inutilidade completa. Daí porque recorremos a esta fábula, ficção, invencionice, como queiram, porque assim as pessoas pensam que se trata apenas de uma diversão... e, eis o mistério, acabam acreditando! Sim, elas acreditam em tudo que não seja sério, porque o sério elas reservam aos guardados do íntimo, que não se expõem às frivolidades do debate público, território dominado pela farsa. Logo, tudo o que não é sério, é só uma piada, ainda que de mau gosto, elas aceitam, curtem, se apaixonam, acreditam, e ... acabam levando a sério! O que completa um ciclo no qual tudo é estragado pela seriedade das pessoas.
b)    Para desentronizar então os meus irmãos sulíssimos de suas seriedades, levei-os congelados para o conforto de cinquenta anos no futuro, onde tudo será possível e onde poderão, então, acreditar em qualquer fantasia sem sentirem-se culpados de perder a noção da “realidade”, algo que não poderiam suportar.
c)     Entretanto, não pude simplesmente deixa-los à solta nesse novo mundo com a sua mente antiga recém-descongelada. Isso poderia confundi-los.
d)    Por isso, em vez do que poderia parecer uma “mera” ficção, estou tentando falar em termos das coisas que ocupam “atualmente” as suas mentes. Cabe aqui um parêntese para anotar que “atualmente” é uma palavra hilariante, porque supõe que o tempo seja como um velho obstinado subindo uma escada. O atual seria o degrau do hoje, o passado seria a queda, o futuro seria a ascensão, etc. Ora, o tempo é como o vento. Vem e vai para onde quer, em qualquer velocidade, girando e carregando todas as possibilidades dos infinitos acontecidos no que chamamos de passado ou de futuro. O que o faz mudar e cismar, além de moda de viola bem tocada pode ser uma coisa banal, como uma borboleta voando ou uma criança abandonada numa rua qualquer. Isso pasmaceia o tempo. Claro, porque se uma borboleta voando na Amazônia pode provocar um furacão na Flórida, imaginem o que pode fazer o abandono de uma criança.
e)     Por fim, para completar esse “futuro” imaginário, eu já estou eleito, porque então tudo o que vou dizer será possível.
Voltemos então ao ponto em que propus uma agenda de questões para o debate eleitoral, restando explicar porque as considero falsas. As questões são as seguintes:
a)     A agenda das Reformas, a começar pela Reforma Política, Fiscal e Tributária;
b)    O Pacto Federativo e a questão da tributação em Mato Grosso do Sul;
c)     A questão do modelo e da estratégia de desenvolvimento do Estado;
d)    A efetividade dos serviços públicos de saúde, segurança, educação, etc, ou seja, de todos os serviços voltados para a manutenção do bem-estar e da paz das pessoas humanas e não humanas.
SOBRE AS REFORMAS:
A Constituição Federal foi promulgada em 5 de Outubro de 1988, como coroamento de duas décadas de luta pela redemocratização do País e vocacionada para remover o “entulho autoritário” do período ditatorial. Em seus 26 anos de existência, a Constituição Cidadã sofreu 83 emendas. Dois fatores contribuem para esse furor (r)emendativo da Carta: o primeiro que a Constituição tratou de muitos assuntos que deveriam ter sido deixados para a legislação infraconstitucional e o segundo, que há um atávico despudor reformatório dos governantes brasileiros, que fazem das reformas constitucionais uma cortina de fumaça para não mudar nada, exceto moldar um ambiente favorável aos seus interesses imediatos. Os dois fatores, cruzados e crismados, confirmam uma cultura política de desprezo pela Constituição. Nesse ramo há gaiatices de sobra, dignas do repertório de Stanislaw Ponte Preta, como essas duas clássicas declarações atribuídas, respectivamente, a Antônio Carlos, governador de Minas Gerais na Revolução de 30 e a Getúlio Vargas, Presidente, Ditador e ídolo da nação: “façamos a revolução antes que o povo a faça!” e “a constituição é como as virgens. Foi feita para ser violada.”
A Constituição de 1988 abriu espaço para a organização da sociedade e assim legitimou a reivindicação de uma nova cidadania, abrindo portas para o exercício da democracia direta, mas não pôde ainda partejar essa nova cidadania, porque a gestação dela não está completa. A participação política pode ser permitida ou proibida, mas decretá-la tem pouca serventia.
Entretanto, ao mesmo tempo em que removia o “entulho autoritário”, a Constituinte colocou em seu lugar o “entulho corporativo”, justamente porque diante de uma cidadania passiva e desorganizada, os sindicatos das corporações públicas e privadas encastelaram-se no topo do sistema jurídico, num movimento estranhamente parecido com a estatização das relações de trabalho promovida por Vargas por meio de sua Polaca de 1937. A respeito disso Hélio Schwartsman escreve na FSP de 18/05/2009 que o artigo 138 da Constituição Federal de 1937 é uma tradução quase literal da Declaração III da Carta del Lavoro, de Mussolini. “Ali estão previstos a unicidade sindical sob tutela do Estado, as contribuições compulsórias e os contratos coletivos de trabalho. Tais mecanismos sobreviveram na CLT e na própria Constituição de 1988.
A Constituição Federal, portanto, funciona muito bem como salvaguarda de direitos legítimos ou ilegítimos, justos ou descabidos, tanto faz, das corporações públicas ou privadas. O importante é anotar que a Constituição não deveria prestar-se a servir de arena para esse conflito, de resto inevitável, mas assim tornado muito mais desigual, entre cidadãos que pertencem a uma corporação abrigada, protegida e financiada pela Carta, aparelhando o Estado, e o resto da população, desabrigada, desprotegida e obrigada a pagar a conta dos direitos corporativos.
Uma vez que a Constituição deixa de ser o enunciado perene de um feixe de princípios civilizadores e mediadores dos conflitos que deveriam ser resolvidos na arena da política democrática, ela se torna um alvo de disputas incessantes por mudanças constitucionais, de modo que não há uma corporação sequer que não esteja mobilizada em algum momento para aprovar a “sua” PEC, garantir o “seu” quinhão do orçamento ou até mesmo aprovar o “seu” imposto. Uma pesquisa no sítio da Câmara dos Deputados com os argumentos PEC e 2014 retorna 52 itens. Ou seja, somente via Câmara, somente no ano de 2014, começaram a tramitar 52 novas Propostas de Emenda Constitucional. A maioria, como se pode notar com um rápido olhar, trata de direitos corporativos e salvaguardas maiores para as corporações. O site Migalhas informava, em matéria publicada em 16 de Abril de 2013 que havia 1.215 PEC’s tramitando no Congresso.
Cabe perguntar, por evidente: como alguém pode esperar que a população leve a sério qualquer proposta de Reforma da Constituição? Aliás, a coisa funciona assim: se há um grande clamor pela aprovação de uma emenda constitucional, como há pela Reforma Política ou pela Reforma Tributária (embora ninguém saiba direito como isso reverterá em benefício da população, já que vão encomendar às raposas a reforma do galinheiro) então isso significa que certamente elas não serão aprovadas, claro, porque se são importantes para a população em geral, devem contrariar muitos interesses corporativos com poder suficiente para barra-las, enquanto uma cidadania ovina espera seu próximo pastor e não tem forças para exigir nada. Entretanto, a cada bimestre ou trimestre emerge em silêncio do forno do Congresso algum novo remendo na Constituição, encomendado pelo Governo ou por algum grupo de interesse abrigado nas franjas do aparelho de Estado.
Por falar em ovelhas, me lembro da fábula do menino que se divertia dando o alarme falso da chegada do lobo. Até que um dia o lobo de fato estava chegando e ninguém acreditou. É o que acontece com a nossa Constituição. Os seus princípios estruturantes, sua “cláusulas pétreas” acabam sendo esquecidos e virando fumaça, em face de tantos alarmes falsos sobre a necessidade de Reformas, enquanto todo mundo sabe que em silêncio os lobos se banqueteiam, quebrando e triturando todos os princípios sagrados.
Voltamos então ao ponto em que estávamos no primeiro tempo desta peroração: o que nos falta é disposição e ambiente (no caso, cultura política) para cumprir a Constituição. Se a ignoramos solenemente e a mutilamos quando nos interessa, quem confia que qualquer reforma aprovada trará algum resultado efetivo ou sobreviverá ao próximo Messias que estamos sempre querendo encontrar e eleger?
Mas é óbvio que se por um milagre surgisse uma cultura política exigente do cumprimento da nossa Lei Maior, então nenhuma Reforma Política ou Reforma Tributária seriam necessárias, simplesmente porque em tal ambiente o eleitorado não deixaria que um grupo se perpetuasse no poder, não toleraria um Judiciário omisso, nem o abuso do poder econômico, não reelegeria mesmo que a reeleição fosse possível, a Guerra Fiscal não existiria, os orçamentos seriam integrados e discutidos com a população e depois cumpridos fielmente e a regressividade da tributação não aconteceria (situação em que os pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos). A regressividade e a complexidade do sistema tributário, aliás, nada têm a ver com a Constituição, mas com a legislação infraconstitucional e com um monte de normas flagrantemente inconstitucionais que continuam vigendo nas barbas dos ministros do Supremo. Ou seja, este e todos os outros grandes problemas invocados para reclamar a urgência das Reformas não existiriam num ambiente político no qual o resultado efetivo de qualquer reforma constitucional pudesse ser garantido. Eis um paradoxo.
O debate pautado pela Reforma Política, pela Reforma Fiscal e pela Reforma Tributária é falso, portanto (o que é uma pena!), porque se é fato que existem os problemas, a causa deles (a raiz) não é a imprecisão do texto ou a vacuidade constitucional. E mais, propor reformas é muito diferente de aprova-las. E aprova-las é ainda mais distante de mantê-las vigorosas e efetivas. Ou seja, se não mudamos coletivamente, como podemos mudar o comportamento padrão dos políticos e governantes que nos espelham?
SOBRE O PACTO FEDERATIVO E SOBRE A TRIBUTAÇÃO EM MATO GROSSO DO SUL
Um pacto pressupõe que dois agentes em igualdade de condições resolvem celebrar um acordo para vantagem e colaboração mútuas, visando manter uma relação harmoniosa. Isso já nos assegura de que não há um verdadeiro Pacto Federativo no Brasil, porque a própria Federação foi outorgada, não foi conquistada.
E a descentralização promovida pela Constituição de 1988 não foi aceita pela União nem assimilada pelos Estados, de modo que a macrocefalia federativa voltou em poucos anos aos níveis do regime militar ou se tornou ainda maior, exceto quanto ao circo eleitoral, que se fragmentou ao ponto do caos programático-ideológico.
O que aconteceu em termos fiscais e tributários após a Constituição de 1988 pode ser comparado com a emancipação súbita de todos os adolescentes de uma grande família: inexperientes e desavisados dos riscos implicados em seus atos, o Estados federados partiram alegremente para a farra fiscal: endividamento, gasto desenfreado, criatividade contábil e furor legislativo-tributário. Frustrados porque a Constituição não permitia licenciosidade com as alíquotas máximas do ICMS e exigia unanimidade de todos os Estados para a concessão de benefícios e incentivos fiscais, os Estados danaram-se a produzir normas inconstitucionais de todos os quilates; primeiro foram leis estaduais, depois, cientes de que as Assembleias estaduais quase nada tinham a acrescentar num imposto de caráter federativo cuja legislação deveria ser produzida pelo CONFAZ e pelo Senado Federal, descambaram para os atos inconstitucionais de baixo calão: uma profusão de Decretos, Resoluções, Portarias, Pareceres, Acordos e normas impublicáveis passaram a reger o dia-a-dia das relações entre os contribuintes e o Fisco dos Estados, elevando o nível do desprezo atávico pela Constituição a proporções babélicas.
Assim, logo os Estados voltaram para a tutela da União. Uma chusma de emendas constitucionais e de leis complementares patrocinadas por sucessivos governos federais trataram de manietá-los e de engessá-los, de modo que os seus gastos e o seu endividamento pudessem ser definidos, controlados e monitorados pelo Governo Central. Definidos por sistemas nacionais de diretrizes para as principais políticas públicas (o que é um passo de cima para baixo na direção da integração orçamentária), como saúde, educação, assistência social, previdência, etc.; controlados por exigências de vinculação de aplicação mínima de percentuais do orçamento em cada uma delas e monitorados trimestralmente pela Secretaria do Tesouro Nacional em relação às metas da Lei de Responsabilidade Fiscal, especialmente quanto ao comprometimento da receita com o pagamento da dívida pública, com o comprometimento da Receita com a Folha e com os Investimentos, por força dos Acordos para o Ajuste Fiscal e para a Renegociação da Dívida dos Estados firmados no bojo do Plano Real.
De modo que, com a exceção de três ou quatro Estados brasileiros cujas economias são tão grandes que eles não conseguem ser tutelados, mesmo que se esforcem para isso, o restante quase que nem justifica mais a autonomia política: para que uma Assembleia que quase nada tem para legislar? Para que um Governador que mal serve como administrador de pessoal? Olhando-se para o balanço fiscal, verifica-se que pouco ou nada foi aplicado ao final de cada exercício que não fosse mera imposição do pagamento de compromissos já assumidos anteriormente (e cujo estoque de precatórios se arrasta mandato após mandato), ou imposição de aplicações mínimas nas principais políticas públicas (controladas por corporações mais ativas e fortes que os próprios governadores), ou (também imposição) de investimentos definidos e financiados no todo ou em parte pelo Governo Central e apenas executados pelos Estados e seus municípios.
É por isso que não se vê nenhum candidato ao parlamento de qualquer cidade ou estado brasileiro que não faça propaganda da sua intenção ou da sua capacidade de trazer recursos do governo central ou dos governos regionais para serem aplicados na região de suas bases eleitorais. Os candidatos ao parlamento nem se lembram de falar em legislar e fiscalizar os executivos, aos quais compete o leva e trás dos recursos orçamentários. Como poderiam? Se para trazer verbas eles precisam ser amigos do Rei e articular-se com os lobbies das empresas que disputam contratos com os governos? De que outra forma poderiam associar seus nomes a obras e investimentos?
Isso é significativo de um desastre político: a jovem democracia brasileira, necessitada do alimento do contraditório nas Casas do Povo, sofre com as coalizões de ocasião que visam apenas à distribuição do butim entre os contemplados no consórcio do poder, na proporção de suas cotas. Até mesmo a oposição tem suas cotinhas e suas queixas parecem sempre inveja dos comensais colocados em lugares mais próximos do Rei, na vasta mesa em que são servidos os recursos da Nação.
Pronto, o conteúdo da política aviltou-se até chegar a isso: acusações de parte a parte sobre quem comeu demais, quem escondeu comida nos bolsos, quem chafurdou mais.
Mas, voltando ao fio solto da balbúrdia tributária dos Estados, alguém mais avisado poderia agora perguntar: como então que apesar da lambança da Guerra Fiscal, de estratégias equivocadas de renúncia fiscal, da exacerbação da complexidade da legislação e do aumento dos conflitos entre o Fisco e os contribuintes, geradores de dívidas ativas monstruosas, o que implica também no aumento do custo público e privado da administração do imposto, como é que a arrecadação do ICMS não parou de crescer, mesmo nos períodos de crise, em todos os Estados do País?
Eis uma boa pergunta, cuja resposta tem aspectos mais evidentes e complexos e outros tão comuns que passam despercebidos. Valho-me de uma bengala metafórica: No ecossistema econômico, o fisco é um crocodilo, um poderoso predador que abocanha com incrível força e oportunismo o que passar boiando em sua frente, seja um filhote ou uma carcaça; sua única diretriz é a fome, seu limite são as margens do rio: o crocodilo espera atocaiado que uma presa vá beber. E para onde flui a corrente dos fatos tributáveis, ou seja, os recursos gerados pelos negócios que são objeto da tributação? Para as grandes empresas, especialmente para aquelas que representam monopólios ou oligopólios ou são concessionárias de processos produtivos, comerciais ou de prestações de serviços em cujas cadeias de circulação elas determinam o preço e controlam as margens de lucro dos demais agentes. Assim, embora o desenho constitucional original do ICM/ICMS fosse o de um imposto sobre valor agregado e plurifásico, ou seja, cobrado em cada etapa da circulação da mercadoria ou serviço e incidindo somente sobre o valor que cada agente da cadeia acrescentasse à sua própria operação ou prestação, o que implicava um extenso trabalho de verificação das escritas de todos os contribuintes que apuravam sua parcela do imposto a recolher, o crocodilo logo percebeu que bastava cobrar uma vez o imposto ao longo de toda a cadeia, preferencialmente na indústria, estimando as margens de valor agregado pelos demais agentes, que assim seriam substituídos pelo industrial.
Isso era inconstitucional no ano de 1985, quando o primeiro produto, o cimento, foi colocado sob esse regime de tributação. Mas deu tão certo que logo se estendeu para os medicamentos, para as bebidas e depois para uma miríade de produtos e situações, de forma que pelo menos oitenta por cento da arrecadação do ICMS já decorre direta ou indiretamente de estratégias de substituição do contribuinte ou do momento da incidência do imposto. Entretanto, - reserve-se essa informação para decorar o bolo -, o ônus do imposto continua recaindo sobre o consumidor. Independente de quem seja o contribuinte de direito, o contribuinte de fato continua sendo aquele que por último paga o preço da mercadoria ou do serviço tributado, porque o valor do imposto segue incluso nesse preço até que alguém o suporte. E porque deu muito certo, a inconstitucionalidade foi resolvida com uma emenda à Constituição. Simples, criativo e brasileiro.
Essa é a faceta mais evidente e complexa, o regime de tributação chamado de substituição tributária, mas não foi somente isso o que aconteceu: a arrecadação passou a ficar cada vez mais concentrada em poucos contribuintes substitutos de suas cadeias de circulação porque também a concentração dos negócios aumentou com o tempo. E a competividade dos grandes players econômicos nacionais e globais foi “comendo” as margens de valor agregado pelos pequenos negócios das cadeias econômicas sob seu domínio, o que tornou mais eficiente o regime de substituição tributária e induziu o crocodilo a se ocupar preferencialmente dos grandes contribuintes e a ver neles (de maneira simplista) a receita para a prosperidade econômica.
Outro fator pouco levado em conta no debate tributário e fiscal (mas que vai definir o futuro de toda a tributação e da própria gestão fiscal) é a explosão dos recursos de informática e comunicação, que trouxeram o processamento das informações fiscais relevantes e a verificação da legalidade e conformidade das operações e prestações tributadas para o tempo real. Em miúdos, a escrituração, contabilização, verificação fiscal, arrecadação e distribuição do produto do imposto para cada ente federado pode ser feita no mesmo momento em que está acontecendo o fato gerador da tributação, em qualquer lugar. O lado mais visível disso para os cidadãos é a Nota Fiscal Eletrônica. Saibam, entretanto, que ela é preenchida e impressa no balcão da loja onde você está comprando, mas foi emitida por um sistema do Fisco que integra todas as administrações fiscais e concentra todos os dados num só lugar.
Enquanto os estados brincavam de esculhambar a Constituição, portanto, o ICMS tornou-se um verdadeiro imposto nacional (e não necessariamente federativo), tanto porque embora instituído para ser cobrado nos territórios dos Estados, os maiores contribuintes dos pequenos estados estão localizados em outros Estados, o que demonstra que a sua administração no âmbito da Federação e não de cada Estado seria mais producente (e sempre foi o CONFAZ, um órgão federativo, o instrumento adequado, antes e depois de 1988, mas os Estados o desmoralizaram); quanto porque a escrituração fiscal de todos os contribuintes está caminhando para ser feita (e para todos os tributos que tenham como base de cálculo o valor das operações, das prestações, das receitas ou do faturamento das empresas!) a partir de uma única base de informações fiscais, de ofício, em tempo real. Ou seja, não haverá mais um lapso temporal entre o momento em que qualquer tributo torna-se devido e a sua apuração dos dois lados do sistema de informações: o Fisco e o contribuinte.
Estiquei demais a corda, agora terei que pausar mais uma vez.
Falta ainda demonstrar a intempestividade do resto da agenda proposta na Parte I, ou seja, Modelo e Estratégia de Desenvolvimento (que contém o resto do que precisa ser dito sobre o ICMS) e Efetividade dos Serviços Públicos.
Verei se faço isso antes de 5 de Outubro, o que não mudará nada, afinal.