segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Reforma Política: faça você mesmo

A Reforma Política entrou nos sonhos de consumo de dez entre dez pessoas preocupadas com a deterioração da política e da gestão do País: uma leva à outra. Como normalmente se discute pouco qual seria o seu conteúdo, já porque nesse particular a unanimidade se esvai, quero tentar colar esse assunto na sequência da discussão iniciada aqui sobre política profissional versus política para amadores.
Só para saber do que estamos falando, as principais propostas para a Mãe de Todas as Reformas, como já vi ser chamada a Reforma Política, normalmente incluem:
1 – fidelidade partidária, medida adotada para evitar o troca-troca de partidos e o descolamento entre mandatos e programas aprovados pelos eleitores. O mandato é do Partido e não do eleito. A troca de partido, portanto, implica a perda do mandato. A Justiça Eleitoral tenta emplacar essa disciplina com base na legislação vigente, mas há controvérsias e leniências;
2 – financiamento público de campanhas, que visa pelo menos diminuir o peso do poder econômico no resultado das eleições. Em tese, alguém sem financiamento privado poderia concorrer em relativa igualdade de condições com os favoritos dos investidores no negócio da política. Além da sangria no Tesouro, mais dinheiro para todos os candidatos somente torna mais dramática a demanda por financiamentos arredios à lei eleitoral. Se a fiscalização e punição não são suficientes nem eficientes hoje, não vejo como o aumento da quantidade de dinheiro vai melhorar a situação;
3 – voto distrital, que visa aumentar a vinculação dos candidatos ao Parlamento com suas bases, criando distritos eleitorais. Em teoria, parece bom que o candidato a Deputado deva buscar sua eleição numa base territorial restrita, pelo que ficaria obrigado a prestar contas aos seus eleitores. Na prática, já acontece que a maioria dos eleitos tem sua base e mantém com ela uma relação constante. O voto distrital, portanto, não resolverá o problema do clientelismo;
Além dessas três medidas principais, a Reforma Política ainda poderia trazer lenitivo para várias queixas recorrentes: a reunificação das eleições, porque a eleição de dois em dois anos atrapalha o andamento dos governos; o fim da reeleição e o aumento do período dos mandatos para cinco anos; a diminuição do número de partidos, aumentando as exigências para o registro partidário; a cisão da Justiça Eleitoral, que hoje concentra poderes de Executivo, Legislativo e Judiciário em matéria eleitoral... e poder demais é tóxico para as instituições; o fim dos foros privilegiados; redução de privilégios e mordomias, limitação dos orçamentos das casas legislativas, etc. e mais o que se possa imaginar até a náusea.
Em que pese o mérito de qualquer conjunto de medidas propostas, há dois problemas. O primeiro, que essas medidas deveriam ser discutidas e votadas pelos atuais legisladores e governantes. E não há qualquer indicação de que eles estejam muito interessados em mudar as regras de um jogo no qual estão goleando a patuleia. O segundo problema é que, mesmo que uma boa dose de mudanças seja empurrada goela abaixo do Congresso por pressão da sociedade (?) ou por artimanha e força de uma grande liderança (?), isso terá o mesmo efeito de baixar a febre de um corpo infectado.
Retomando o que já discutimos alhures: a raiz profunda do problema está na cultura política dos cidadãos, que ainda não se percebem como tal, ou seja, como detentores do poder do Estado e responsáveis em última instância pelo que acontece na República. Sem esse senso de responsabilidade pelo que os mandatários fazem com o mandato que nós entregamos a eles não há República. Pensando o caso pelo seu reverso, se houvesse um crescimento razoável da responsabilidade pelo que é público e um pouco de interesse pela gestão do País fora do período do circo eleitoral, então não precisaríamos de Reforma Política alguma, porque o voto dos eleitores promoveria por si só a limpeza do sistema político.
A conclusão é uma só: a Reforma Política, assim como qualquer outra reforma do Estado não é assunto dos governos e nem do Congresso, é assunto da sociedade. Quem dá o mandato deve ser capaz de fiscalizá-lo e de tirá-lo quando o mandatário descumprir ou desviar-se dele. É assim quando uma pessoa outorga uma procuração para alguém dispor de um bem seu, e com mais razão também deveria ser assim quando outorgamos para alguém um mandato para dispor do que pertence a todos nós.
Produzir normas não adianta grande coisa, se nunca nos damos ao trabalho de cumprir as normas existentes. Mas não sou pessimista, longe disso. Acho que a coisa é bem mais simples: bastaria, por enquanto, que 30% dos eleitores começasse a não votar duas vezes na mesma pessoa para o mesmo cargo, ainda que o desempenho do eleito tivesse sido excelente. Trata-se de não reeleger por uma questão de princípio.
Agora pense nas implicações disso: reeleição zero! Eu já comecei: não voto mais em ninguém duas vezes para o mesmo cargo!

sábado, 22 de janeiro de 2011

A nova aristocracia: os profissionais da política

Seis séculos antes de Cristo os atenienses inventaram a democracia e a praticaram depois por quase duzentos anos. Os cidadãos reuniam-se numa praça e deliberavam com amplos poderes sobre todas as questões importantes do Estado. Não havia representantes e nem separação entre governo e cidadãos, já que o poder de governar era da Assembléia. Isso era possível em Atenas porque o número de cidadãos era reduzido: as mulheres, os escravos e os estrangeiros não tinham cidadania. No apogeu da democracia ateniense, entre 460 a.C e 430 a.C, cerca um décimo da população podia participar da Assembléia. As estimativas para a população total de Atenas nesse período variam, conforme a fonte, entre 230 mil até 400 mil pessoas. Mesmo para a hipótese mais conservadora para o tamanho dessa população, entretanto, isso resultava numa enorme assembléia.
Não importa muito aqui conhecer os números exatos da população de Atenas. Basta comparar: temos mais de 180 milhões de habitantes no Brasil e a soma de todas as pessoas que possuem poder suficiente para decidir os rumos do governo, considerando os membros dos quatro poderes de todos os entes federativos (Executivo, Legislativo e seus Tribunais de Contas, Judiciário e Ministérios Público da União, dos Estados e dos Municípios) e mais os tubarões que podem mandar mais que todos os outros juntos, aposto um café, não chegará a meio por cento da população. Isso pode ser bom ou ruim, já que não raro temos vontade de reduzir o número de vereadores e deputados, mas dá o que pensar sobre o processo de concentração do poder e de separação entre quem realmente governa e quem paga a conta.
Isso aconteceu porque as grandes revoluções do Séc XVIII sacramentaram o princípio da igualdade (liberdade, igualdade, etc) como pilar dos sistemas e formas de governo, o que resultou na reinvenção da democracia, a fim de torná-la acessível a grandes populações de iguais: a eleição de representantes que pudessem expressar a vontade dos seus eleitores. Como reunir todo mundo numa praça para deliberar? É impraticável. A solução natural é investir de poderes a poucos para deliberar em nome de muitos.
Problema: criamos com isso uma nova aristocracia. Essa nova aristocracia não lega os seus títulos como propriedade da família, mas especializou-se em conservar o poder profissionalizando a política. Disso resulta que os representantes eleitos representam cada vez menos aos seus eleitores, os quais, majoritariamente, afastam-se da política como arte de governar o interesse público, torcem o nariz para a democracia e vêem nas eleições apenas a oportunidade momentânea de ganho pessoal. As eleições consolidam-se, portanto, como negócio de alto risco, dominada pelos mais ricos e empreendedores.
Ora, se o cidadão investiu milhões para ser eleito deputado, senador ou prefeito, porque deveria ter fidelidade à vontade dos eleitores? Afinal, a eleição só é tão cara porque o povo está disposto a “vender” o seu voto, seja em troca de dinheiro, de favores ou apenas de circo, matéria abundante nas campanhas. Sendo assim, o eleito terá fidelidade aos que financiaram sua campanha. Quanto ao povo, precisa apenas ser enganado, com mais circo e com a fábrica de boas notícias e de mais passividade.
A política como negócio profissional é uma degeneração do sistema que adotamos. Quais as soluções que os amadores podem propor? Disso falarei depois, porque hoje é sábado.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O peso da bandeira da ética

Fala-se muito em ética na política. Para mim, isso parece uma maldição recorrente. Quem se lembra do discurso que justificava o golpe militar de 64? Combate à corrupção. Em nome dele se perseguiu os inimigos políticos. Quem se lembra do discurso do PT nos anos 80 e 90? Apelou para o recurso fácil do moralismo. Em nome dele armaram-se plebiscitos entre a turma do “bem” contra a turma do “mal”, empobrecendo a redemocratização do País.
E todos se lembram da última campanha presidencial, é claro, porque se passaram apenas alguns meses. Foi dominada novamente pelo maniqueísmo, neste caso armado por Lula num plebiscito bizantino engolido placidamente pela oposição, que se houve pobremente democrática e muito mais oportunista e golpista do que seria minimamente desejável, dando asas ao populismo autoritário do ex-presidente.
Agora pipocam cartas de princípios de saudáveis movimentos pela ética na política. Saudáveis enquanto não crescem e enquanto não tentam passar do discurso para a prática. Porque logo chegará o momento de cerrar fileiras em torno das próximas eleições e o dilema dos que pregam a ética chegará: quem poderá fazer parte do lado dos éticos? E quem será atacado por pertencer ao lado não ético? Haverá um medidor de ética? Servirá apenas a ficha policial dos postulantes? Ou se repetirão as patrulhas ideológicas? Corrijo. No caso, serão patrulhas menos que ideológicas, serão patrulhas morais.
Penso que essa mobilização cíclica contra a corrupção esconde o raquitismo da cultura política nacional, cujos sintomas podem ser simplificados assim: os ricos só esperam que nada ameace os seus privilégios, entre os quais se inclui contribuir muito pouco para a renda do Estado, os pobres só esperam ter acesso ao mínimo para sobreviver e estão pouco se lixando se os governos são mais ou menos éticos e a classe média, essa sim, quer mudanças, porque a classe média sente-se eternamente roubada e impedida de enriquecer, mas por causa do raquitismo político só consegue mobilizar-se para o combate à corrupção.
Por isso essa classe média predominantemente moralista é a mesma que apoiou o golpe militar, é a mesma que engrossou a oposição contra a ditadura militar quando a economia entrou em pane, é a mesma que encorpou e apoiou o PT quando ele era paladino da moralidade e é a mesma que demonizou Dilma por seu passado na guerrilha e supostos desvios em face da moral cristã.
A ética na política é uma bandeira cômoda, mas é muito pesada, porque supõe o momento crucial de atirar a primeira pedra. E a pedra pode cair no pé.
Nota: misturei as noções de ética e moral porque é assim que elas aparecem na realidade social: indevidamente misturadas. Voltaremos depois ao tema, para separá-las. Ou não.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O preço da democracia brasileira

Há outra tragédia subjacente às tragédias provocadas pelas chuvas de verão: o preço que pagamos pela fragilidade da nossa democracia.
Essa fragilidade tem raízes na cultura política individualista e messiânica: cada um espera o seu salvador. Para dar o seu voto, a maioria pergunta antes o que o candidato, a eleição, o eleito, o governante ou o governo vão trazer de vantagem imediata para si, para a sua família, para a sua empresa, para a sua corporação.
Como resultado dessa cultura patrimonialista e pré-republicana, na qual o Rei pode dispor livremente do Tesouro, desde que seja para favorecer o seu cliente, prioriza-se o é nosso (interesse particular) e não o que é de todos (res publica, interesse público).
Herança genética das monarquias ibéricas, isso nos leva à doença crônica e degenerativa da nossa democracia: o clientelismo, que torna natural a troca de favores por votos, o que, por sua vez, faz das eleições um negócio como outro qualquer, no qual se investe dinheiro pesado, o que desemboca, por fim, em governos que precisam realimentar o ciclo do financiamento das campanhas cada vez mais caras, a fim de manter o poder, objetivo final de todo o empreendimento político. E como todo empreendimento, a política se torna cada vez mais profissional, virtual e cartelizada.
Ora, precisamente neste ponto se encontram a tragédia sazonal das chuvas com a tragédia permanente da política: governos mobilizados para fazer caixa para a eterna “campanha do ano que vem” instituem de bom grado o emergencialismo, um substituto falso para políticas públicas planejadas, mas que por isso mesmo só dariam resultados em longo prazo, para além dos horizontes do mandato.
A cada dois anos há uma eleição e é preciso juntar num ano o capital político e financeiro que se gastará no ano seguinte para dar sequência ao consórcio de poder no qual se juntam os ganhadores e os perdedores. Os consórcios de partidos e seus candidatos sustentam-se na predileção da maioria dos eleitores por obras novas, novos nomes para velhos programas, promessas e agrados imediatos, propaganda das qualidades pessoais dos líderes de plantão e demonização dos seus adversários.
Importante para o enredo dessa comédia, sobretudo, é a cantilena obscura de que serão feitas as “reformas-da- Constituição-Federal-de-que-o-País-precisa-para-ser-grande-e-competitivo-no-Século-XXI”. Só nos esquecemos de que os países mais avançados têm constituições antigas e tradição de respeitar suas leis.
Nesse caldo indigesto que mistura politicagem mais que tolerada pelo público com improviso total da gestão, ao descabelo de todas as normas, a emergência e o clamor público são o gatilho ideal para as contratações sem os cuidados legais, superfaturamentos, abandono de investimentos e manutenção excessivamente onerosa de obras e serviços.
Um exemplo e uma pergunta: quanto custa o asfalto mal feito, ao longo de vinte anos, em comparação com outro feito para durar vinte anos? E a pergunta contrária: mas como exigir de um governo que “faça mais com menos” se a relação custo-benefício de um investimento só se tornará positiva depois de muitos anos de operação a baixo custo?
Resta então o circo, o pão, a tragédia, a novela da política, o improviso da gestão, o espetáculo da solidariedade e da passividade brasileiras. Os mesmos grupos revezam-se no poder para fazer a mesma coisa que antes criticavam, como o Yin e Yang: um se transforma no outro conforme o lado escuro da montanha de manhã torna-se claro à tarde.
Assistimos à vitória da emergência sobre o planejamento, do vale-tudo sobre a legalidade, da apatia submissa sobre a cidadania consciente e crítica. Dá para entender porque há projetos de poder para vinte anos, mas não há projetos de desenvolvimento para vinte anos.
A conclusão: governos apenas fazem o que é preciso para se manter no poder. Já as condições para que se mantenham no poder é dada pelas escolhas dos eleitores.
Enquanto a maioria de nós preferirmos os favores pessoais e o culto à personalidade dos líderes, continuaremos pagando o preço disso e perpetuando o que já dizia Lima Barreto há um século: no Brasil não temos cidadãos, temos espectadores.