A Reforma Política entrou nos sonhos de consumo de dez entre dez pessoas preocupadas com a deterioração da política e da gestão do País: uma leva à outra. Como normalmente se discute pouco qual seria o seu conteúdo, já porque nesse particular a unanimidade se esvai, quero tentar colar esse assunto na sequência da discussão iniciada aqui sobre política profissional versus política para amadores.
Só para saber do que estamos falando, as principais propostas para a Mãe de Todas as Reformas, como já vi ser chamada a Reforma Política, normalmente incluem:
1 – fidelidade partidária, medida adotada para evitar o troca-troca de partidos e o descolamento entre mandatos e programas aprovados pelos eleitores. O mandato é do Partido e não do eleito. A troca de partido, portanto, implica a perda do mandato. A Justiça Eleitoral tenta emplacar essa disciplina com base na legislação vigente, mas há controvérsias e leniências;
2 – financiamento público de campanhas, que visa pelo menos diminuir o peso do poder econômico no resultado das eleições. Em tese, alguém sem financiamento privado poderia concorrer em relativa igualdade de condições com os favoritos dos investidores no negócio da política. Além da sangria no Tesouro, mais dinheiro para todos os candidatos somente torna mais dramática a demanda por financiamentos arredios à lei eleitoral. Se a fiscalização e punição não são suficientes nem eficientes hoje, não vejo como o aumento da quantidade de dinheiro vai melhorar a situação;
3 – voto distrital, que visa aumentar a vinculação dos candidatos ao Parlamento com suas bases, criando distritos eleitorais. Em teoria, parece bom que o candidato a Deputado deva buscar sua eleição numa base territorial restrita, pelo que ficaria obrigado a prestar contas aos seus eleitores. Na prática, já acontece que a maioria dos eleitos tem sua base e mantém com ela uma relação constante. O voto distrital, portanto, não resolverá o problema do clientelismo;
Além dessas três medidas principais, a Reforma Política ainda poderia trazer lenitivo para várias queixas recorrentes: a reunificação das eleições, porque a eleição de dois em dois anos atrapalha o andamento dos governos; o fim da reeleição e o aumento do período dos mandatos para cinco anos; a diminuição do número de partidos, aumentando as exigências para o registro partidário; a cisão da Justiça Eleitoral, que hoje concentra poderes de Executivo, Legislativo e Judiciário em matéria eleitoral... e poder demais é tóxico para as instituições; o fim dos foros privilegiados; redução de privilégios e mordomias, limitação dos orçamentos das casas legislativas, etc. e mais o que se possa imaginar até a náusea.
Em que pese o mérito de qualquer conjunto de medidas propostas, há dois problemas. O primeiro, que essas medidas deveriam ser discutidas e votadas pelos atuais legisladores e governantes. E não há qualquer indicação de que eles estejam muito interessados em mudar as regras de um jogo no qual estão goleando a patuleia. O segundo problema é que, mesmo que uma boa dose de mudanças seja empurrada goela abaixo do Congresso por pressão da sociedade (?) ou por artimanha e força de uma grande liderança (?), isso terá o mesmo efeito de baixar a febre de um corpo infectado.
Retomando o que já discutimos alhures: a raiz profunda do problema está na cultura política dos cidadãos, que ainda não se percebem como tal, ou seja, como detentores do poder do Estado e responsáveis em última instância pelo que acontece na República. Sem esse senso de responsabilidade pelo que os mandatários fazem com o mandato que nós entregamos a eles não há República. Pensando o caso pelo seu reverso, se houvesse um crescimento razoável da responsabilidade pelo que é público e um pouco de interesse pela gestão do País fora do período do circo eleitoral, então não precisaríamos de Reforma Política alguma, porque o voto dos eleitores promoveria por si só a limpeza do sistema político.
A conclusão é uma só: a Reforma Política, assim como qualquer outra reforma do Estado não é assunto dos governos e nem do Congresso, é assunto da sociedade. Quem dá o mandato deve ser capaz de fiscalizá-lo e de tirá-lo quando o mandatário descumprir ou desviar-se dele. É assim quando uma pessoa outorga uma procuração para alguém dispor de um bem seu, e com mais razão também deveria ser assim quando outorgamos para alguém um mandato para dispor do que pertence a todos nós.
Produzir normas não adianta grande coisa, se nunca nos damos ao trabalho de cumprir as normas existentes. Mas não sou pessimista, longe disso. Acho que a coisa é bem mais simples: bastaria, por enquanto, que 30% dos eleitores começasse a não votar duas vezes na mesma pessoa para o mesmo cargo, ainda que o desempenho do eleito tivesse sido excelente. Trata-se de não reeleger por uma questão de princípio.
Agora pense nas implicações disso: reeleição zero! Eu já comecei: não voto mais em ninguém duas vezes para o mesmo cargo!