Há outra tragédia subjacente às tragédias provocadas pelas chuvas de verão: o preço que pagamos pela fragilidade da nossa democracia.
Essa fragilidade tem raízes na cultura política individualista e messiânica: cada um espera o seu salvador. Para dar o seu voto, a maioria pergunta antes o que o candidato, a eleição, o eleito, o governante ou o governo vão trazer de vantagem imediata para si, para a sua família, para a sua empresa, para a sua corporação.
Como resultado dessa cultura patrimonialista e pré-republicana, na qual o Rei pode dispor livremente do Tesouro, desde que seja para favorecer o seu cliente, prioriza-se o é nosso (interesse particular) e não o que é de todos (res publica, interesse público).
Herança genética das monarquias ibéricas, isso nos leva à doença crônica e degenerativa da nossa democracia: o clientelismo, que torna natural a troca de favores por votos, o que, por sua vez, faz das eleições um negócio como outro qualquer, no qual se investe dinheiro pesado, o que desemboca, por fim, em governos que precisam realimentar o ciclo do financiamento das campanhas cada vez mais caras, a fim de manter o poder, objetivo final de todo o empreendimento político. E como todo empreendimento, a política se torna cada vez mais profissional, virtual e cartelizada.
Ora, precisamente neste ponto se encontram a tragédia sazonal das chuvas com a tragédia permanente da política: governos mobilizados para fazer caixa para a eterna “campanha do ano que vem” instituem de bom grado o emergencialismo, um substituto falso para políticas públicas planejadas, mas que por isso mesmo só dariam resultados em longo prazo, para além dos horizontes do mandato.
A cada dois anos há uma eleição e é preciso juntar num ano o capital político e financeiro que se gastará no ano seguinte para dar sequência ao consórcio de poder no qual se juntam os ganhadores e os perdedores. Os consórcios de partidos e seus candidatos sustentam-se na predileção da maioria dos eleitores por obras novas, novos nomes para velhos programas, promessas e agrados imediatos, propaganda das qualidades pessoais dos líderes de plantão e demonização dos seus adversários.
Importante para o enredo dessa comédia, sobretudo, é a cantilena obscura de que serão feitas as “reformas-da- Constituição-Federal-de-que-o-País-precisa-para-ser-grande-e-competitivo-no-Século-XXI”. Só nos esquecemos de que os países mais avançados têm constituições antigas e tradição de respeitar suas leis.
Nesse caldo indigesto que mistura politicagem mais que tolerada pelo público com improviso total da gestão, ao descabelo de todas as normas, a emergência e o clamor público são o gatilho ideal para as contratações sem os cuidados legais, superfaturamentos, abandono de investimentos e manutenção excessivamente onerosa de obras e serviços.
Um exemplo e uma pergunta: quanto custa o asfalto mal feito, ao longo de vinte anos, em comparação com outro feito para durar vinte anos? E a pergunta contrária: mas como exigir de um governo que “faça mais com menos” se a relação custo-benefício de um investimento só se tornará positiva depois de muitos anos de operação a baixo custo?
Resta então o circo, o pão, a tragédia, a novela da política, o improviso da gestão, o espetáculo da solidariedade e da passividade brasileiras. Os mesmos grupos revezam-se no poder para fazer a mesma coisa que antes criticavam, como o Yin e Yang: um se transforma no outro conforme o lado escuro da montanha de manhã torna-se claro à tarde.
Assistimos à vitória da emergência sobre o planejamento, do vale-tudo sobre a legalidade, da apatia submissa sobre a cidadania consciente e crítica. Dá para entender porque há projetos de poder para vinte anos, mas não há projetos de desenvolvimento para vinte anos.
A conclusão: governos apenas fazem o que é preciso para se manter no poder. Já as condições para que se mantenham no poder é dada pelas escolhas dos eleitores.
Enquanto a maioria de nós preferirmos os favores pessoais e o culto à personalidade dos líderes, continuaremos pagando o preço disso e perpetuando o que já dizia Lima Barreto há um século: no Brasil não temos cidadãos, temos espectadores.
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