Acredite ou não, há boas notícias vindas até do Fisco estadual. Não pense que eu
sou pessimista, é exatamente o contrário: eu acredito numa administração fiscal
equitativa e ancorada em dois pilares: 1) jamais afetar a competitividade da
economia artificialmente; e 2) jamais deixar que a necessidade de receitas
exceda a capacidade contributiva da base econômica da tributação. Isso é
possível? Perfeitamente possível. As pessoas que cuidam de suas famílias fazem
isso todos os dias.
Mas acontece que com o festival de infortúnios de toda
espécie que as pessoas se acostumaram a colocar na conta das iniciativas dos
governos de todos os níveis, parece uma piada de mau gosto dizer que há uma boa
notícia produzida pelo Fisco, mesmo que seja pequenina, mas neste caso,
finalmente, é verdade!
E tem mais, a notícia é muito boa mesmo! Em quarenta anos
convivendo com a Fazenda Pública dos dois lados do balcão, já vi muitas coisas
boas acontecerem (sem que ninguém delas tivesse conhecimento, infelizmente!),
mas um acontecimento desses, do qual todas as pessoas que usam smartphone ou
computador podem se beneficiar, isso eu nunca vi!
Nessa altura você já descobriu! É isso mesmo, um aplicativo
para celulares e computadores que informa, com atualização a cada quinze
minutos, o melhor preço numa região que
você pode definir a partir de sua localização, de qualquer produto
especificado numa nota fiscal eletrônica ou documento fiscal eletrônico
equivalente.
Essa inovação chama-se “Melhor Preço MS” e vem na esteira do
seu similar “Menor Preço”, instituído com sucesso no Paraná. Melhor preço
porquê? Porque o aplicativo não informa o menor entre todos os preços, apenas o
menor preço praticado na área pesquisada e constante na base de documentos
fiscais eletrônicos da SEFAZ-MS. O preço informado, então, é o melhor preço para aquele usuário, dentro
de suas possibilidades de deslocamento.
A ideia é tão boa que já se tornou recomendação do programa
nacional de modernização dos fiscos estaduais, dirigida ao ENCAT (Encontro das
Administrações Tributárias) para abranger todo o território nacional. Ora, esse
programa de modernização já acontece há
mais de vinte anos e consumiu centenas de milhões de dólares em
investimentos nas fazendas públicas estaduais e mais o trabalho de gerações de equipes dedicadas e otimistas com a
possibilidade de fazer mais com menos e devolver à sociedade parte dos
recursos investidos, na forma de bons serviços, com o bônus de melhorar a
imagem e as relações entre o Fisco e a sociedade, que nunca foram baseadas em
confiança e colaboração.
O Melhor Preço
está saindo agora, mas o esforço realizado para que ele pudesse finalmente vir
a lume foi gigantesco. Para que se tenha uma ideia: no início dos anos 90 a
arrecadação total do mês anterior era conhecida somente um mês depois, após a
conferência manual de cada guia de recolhimento; não existia nenhum computador pessoal na SEFAZ, e,
portanto, nenhum relatório gerencial que permitisse saber, por exemplo, quanto
era o valor real (e não apenas nominal) da receita tributária, porque a
inflação era tão alta que os valores históricos nada significavam; os saldos
das contas bancárias eram controlados numa planilha de papel por um heroico
servidor que passava o dia inteiro tentando “fechar” o número final e nunca
podia terminar aquele trabalho, porque a quantidade de transações não cabiam no
tempo livre para lançá-las em papel; e assim também a inadimplência e a
sonegação dependiam, para ser detectadas, de uma visita presencial de um agente
do fisco ao estabelecimento do contribuinte, para ali conferir um por um os
papéis a partir dos quais se fazia a apuração do imposto devido.
Nos últimos trinta anos, a tecnologia de processamento da
informação deu um salto de séculos, o equivalente à reinvenção da escrita… e da
própria leitura! Do ponto de vista dos controles do fisco estadual, que é o
nosso caso aqui, a mudança é tão grande que mesmo quem está dentro da estrutura
tem dificuldade para enxergar (como a formiga não vê a montanha em que habita),
mas significa em termos práticos que todas as transações necessárias para
completar totalmente o ciclo de vida da relação jurídico tributária podem ser
conhecidas e processadas no mesmo momento em que acontecem, o que levou o ICMS
a uma metamorfose em sua genética original: de um imposto que só poderia ser
apurado e pago por iniciativa do contribuinte, após ocorrido o fato gerador
(venda), cabendo ao Fisco apenas homologar o procedimento no prazo de cinco
anos, passou a ser lançado de ofício e cobrado imediatamente, via nota fiscal
eletrônica emitida no Estado de origem, por todas as incidências futuras até o
consumo final, tão logo seja detectada uma compra de mercadoria para revenda ou
consumo ou ativo fixo, realizada pelo contribuinte inscrito ou pelo consumidor
pessoa física. Ou seja, escolhe-se o momento ideal para estabelecer a incidência
e arrecadação do imposto e substitui-se todos os outros agentes que interferem
na cadeia de circulação, minimizando a quase nada aquele trabalho enorme de
conferir toda a papelada de todos os agentes da cadeia de circulação. Assim, a
fiscalização de todas as transações, sejam compras, vendas, recebimentos ou
pagamentos pode ser feita mediante o cruzamento em tempo real de todas elas,
por meio de programas que “caçam” desvios nos padrões esperados no mar de
informações.
Foram muitas mudanças, de fato. Tantas e tão rápidas que
muitas pessoas ainda se recusam a assimilar o que aconteceu. E essa história
vem a calhar a respeito de algumas críticas que se ouviram do aplicativo
“Melhor Preço”.
Para começar, há um certo espanto do próprio Fisco com a
ideia de fornecer qualquer informação, já que ele se acostumou somente a
receber, exigir e esconder toda a informação sobre tudo o que que caia na sua
malha.
Mas também entre os contribuintes consultados surgiram
alguns questionamentos, dos quais os dois principais são:
1)
O preço praticado pelo comerciante não seria uma
informação privada, um trunfo legítimo que ele pode usar no jogo do comércio
para negociar com o seu cliente, sendo sua escolha livre vender mais barato
para um (que pague em dinheiro, por exemplo) e mais caro para outro (que queira
pagar com cartão de crédito), numa transação mais onerosa para o comerciante?
2)
O preço efetivo da transação informada ao Fisco
no documento fiscal eletrônico não estaria sujeito ao sigilo fiscal?
Do ponto de vista do consumidor, que somos todos, a resposta
é uma só: não e não!
Ora, para começo de conversa, nenhum interesse particular
pode sobrelevar-se ao interesse público, a não ser que coloque em risco a vida,
a integridade física e moral e o patrimônio da pessoa… física. Já a pessoa
jurídica, como se sabe, sofre restrições muito maiores quanto ao seu
patrimônio. Já porque o Fisco (de todas as esferas) constitui-se no sócio
majoritário de todos os negócios. É só fazer as contas: se 30% de todo o
patrimônio converte-se em tributos e outros encargos não tributários, porém
obrigatórios e sem contrapartida, que são impostos a partir do poder do Estado,
sobra 70% do patrimônio para ser distribuído entre trabalhadores, fornecedores,
financiadores (juros), contingências (riscos), depreciações e amortizações. Só
depois disso começa o patrimônio do empresário e seus outros sócios. Dá para
afirmar, sem sobroço: nada é mais público do que uma empresa que cumpre todas
as leis do País. E o contrário torna-se uma verdade horrível: nada é mais
privado do que o Estado quando age em conluio com empresas para lesar a
população!
Mas os pragmáticos que infestam a praça hão de protestar: as
empresas estão numa batalha de sobrevivência! É preciso que se deixe a elas um
cotoco de espada para pelear. Consumidores e comerciante que se hajam o melhor
que puderem sem a intervenção do Estado! Etc.
Não procede o argumento, se queremos avançar o patamar
civilizatório, em vez de regredir às trevas. A boa-fé deve presidir todos os
negócios, públicos e particulares, estatais ou privados, e fora desse princípio
informador do sistema jurídico só nos resta a barbárie, o engodo, o espúrio, o
inconfessável, o que não resiste à publicidade e à transparência. Sendo assim,
o preço efetivo das transações é muito mais público do que privado.
A transparência, por outro lado, inicia e acelera o ciclo
virtuoso que pode nos levar para a sustentabilidade do processo de
desenvolvimento, ou seja, mais colaboração comunitária, mais confiança, mais
capital social, mais democracia. Como modo de vida, como modo de negociar. Como
modo de solucionar conflitos.
Sobre sigilo fiscal nem é preciso argumentar, tão pedestre a
alegação. Como pode ser sigilo fiscal o que se anuncia nos folhetos, nas placas
em frente às lojas, nos sites de busca da Internet, nos alto-falantes, na
televisão? A não ser, e isso é terrível admitir, que tudo seja feito apenas
para enganar o consumidor.
Para terminar, defendamos o título: o Melhor Preço é o
melhor para todos, porque, sucintamente:
a)
Ajuda o Fisco, na medida em que os preços
lançados nas notas fiscais serão “cobrados” em sua exatidão também por todos os
consumidores e não só pela fiscalização tributária. Isso também dá suporte mais
realista para a fixação dos preços da pauta de referência fiscal, que
historicamente vem sendo “esquecidos” quando estão altos e reajustados
rapidamente quando estão baixos, gerando tributação desconforme a regra
constitucional de que a base de cálculo é o preço efetivamente praticado;
b)
Interessa muito aos comerciantes que estão
dispostos a enfrentar sua concorrência, porque o aplicativo Melhor Preço será
sua propaganda gratuita e acreditada mediante chancela oficial, aumentando a
confiança do consumidor. Entretanto, se um comerciante não pode praticar preços
competitivos, a desinformação e a interferência do Estado (por omissão ou por
ação) nunca será a melhor solução para o seu problema. Livre mercado só é
verdadeiramente livre quando há transparência em todas as transações;
c)
Para o consumidor, que somos todos nós, nem há o
que argumentar. Basta pensar na correria dos pais e mães em busca do melhor
preço para adquirir material escolar na volta às aulas, entre tantos outros exemplos
dramáticos;
d)
Para os desenvolvedores de serviços baseados na
confiabilidade da informação sobre os preços, basta citar uma possibilidade:
precificar uma lista de compras, realizar essas compras e entregar em domicílio.
Calcule a economia marginal disso sobre o trânsito, sobre a redução de
frustrações, sobre o emprego, etc.
Quanto tempo mais a SEFAZ vai adiar o lançamento do
aplicativo Melhor Preço? Será necessária uma audiência pública para a qual se
chamem todos os segmentos sociais interessados? Deputados, vereadores,
lideranças sociais, OAB, democratas, estamos esperando o quê? Para sua
informação, o aplicativo está pronto. Palmas antecipadas para o governo que
teve a sorte de herdar todo o trabalho que possibilitou esse serviço
sensacional.
José Carlos
Gomes
Auditor
Fiscal da Receita Estadual, aposentado
Advogado
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