Parte I
Primeiro, as
primeiras coisas. Ser governador de Mato Grosso do Sul é diferente de ser
governador da maioria dos estados brasileiros. Só é ligeiramente parecido com
ser governador de Mato Grosso, mas Goiás já é outro mundo, Tocantins está do
outro lado da nossa lógica e mesmo com o Mato Grosso temos nossas longitudes
imaginárias mais ao Leste. Mato Grosso do Sul é um estado que ficou no meio do
resto de todos os caminhos, como rota de passagem para o Sul, o Sudeste e o
Norte do Brasil, o Paraguai, a Bolívia e o mítico Pacífico, que fica depois de
uma cordilheira escondida nas nuvens. Trata-se de um lugar esgarçado em suas
preferências de pertencimento: ora queremos ser do Sudeste, ora do Sul, ora do
Norte, ora sonhamos em voltar a ser Paraguai, ora escorregamos para o lúdico
pantanal e ora subimos rumo ao Planalto Central, elevando nossos planos. O
resultado é que somos fragmentos de muitos sonhos, nenhum deles aparatado a nos
conduzir para a unidade em torno de uma visão de futuro.
Sonhar em
ser governador de Mato Grosso do Sul é um direito de cada cidadão domiciliado nesta
terra, e claro, um direito constitucional, desde que seja filiado a um partido.
Mas é preciso saber também que quase tudo o que importa na nossa Constituição
ainda pertence ao território da Utopia, a começar pela ideia de que somos uma
República, na qual todos têm o mesmo direito, independentemente da extração
social ou da associação a qualquer coisa, inclusive partidos.
Já pela
primeira ressalva, portanto, meu sonho é fictício, não se trata de um sonho
sonhável. Isso decorre de várias descondições, além das já citadas, e conseguintes:
a) fragmentação do território, da
cultura e da economia em partes muito desarticuladas em termos de projeto
político;
b) cultura política mais atrasada
comparativamente ao espelho do Sul e Sudeste onde Mato Grosso do Sul gosta de
mirar-se;
c) menoridade federativa, porque Mato
Grosso do Sul ainda não obteve emancipação desde que foi outorgado e imposto
como unidade federada para atender ao desejo de sua elite rala e desunida,
orientada por disputas familiares. Continua assim a pensar-se como dependente
de mesadas federais e elege seus heróis em termos do volume de transferências
federais que cada político de “bom trânsito” possa “trazer”;
d) predominância de uma cidadania
passiva e pouco mobilizada para a defesa do interesse público e coletivo, ou
seja, um paraíso clientelista.
Quem
poderia, portanto, candidatar-se a qualquer cargo público em Mato Grosso do Sul
sem muito dinheiro para atender a uma clientela suficientemente vasta e que
espera o período eleitoral como quem espera a colheita da plantação de uma rede
de relações pessoais com os futuros eleitos? E que cidadão poderia sonhar, no
rumo da insensatez contrária, em ser governador dessa gente propondo-lhe apenas
ideias sobre como conduzir a gestão do Estado? Ora, se a eleição é um
empreendimento pessoal para o eleitor (substantivada na reflexão o que eu ganho
com isso?), o mandato também será a mesma coisa para o governante. Equação
financeira de investimento e retorno.
Mas... e se
daqui a cinquenta anos as coisas forem muito diferentes, imaginando-se que o
ritmo de mudanças permaneça o mesmo e nada parecido com o fim do mundo aconteça?
Ah, assim dá para sonhar! E já que se trata de um sonho, levemos então as
condições de hoje para esse futuro imaginário, igualmente como se Mato Grosso
do Sul fosse o Capitão América, congelado com toda sua cultura, sua economia e
seu povo, acordando apenas cinquenta anos no futuro. Ou seja, em vez de evoluir
aos poucos, tudo precisaria ser assimilado em três meses, o período dessa mesma
hipotética campanha eleitoral de hoje. Aliás, essa campanha de hoje está
acontecendo quando? Esse tempo em que vivemos aqui é antes ou depois da
Primavera Árabe? E esta, por sua vez, aconteceu antes ou depois da Revolução
Francesa? Bom. Deixemos de lado essa questão da inexatidão dos tempos.
Nesse
futuro, um cara como eu certamente poderia ser candidato e poderia ser levado a
sério, mesmo que não pertencesse a nenhum partido, porque já então qualquer
cidadão teria as mesmas condições de falar aos seus concidadãos sem o aval de
um partido político. Isso ocorreu no futuro porque a revolução científica e
tecnológica facilitou muito a comunicação e permitiu que o direito de ser
votado e o de votar sobre todas as questões estratégicas para o País pudesse
ser estendido para qualquer cidadão em qualquer tempo, tornando nossa Constituição
um pouco mais democrática e republicana, com a instituição embrionária de uma
democracia direta, já que a democracia direta em sua plenitude implica na
desnecessidade do Estado. Todos os eleitos poderiam dedicar-se apenas a funções
sacerdotais.
Assim confiante
de que poderia ser ouvido e eleito apenas dizendo publicamente como pretenderia
governar, já que também haverá no futuro uma magnífica valorização de qualquer
declaração considerada sensata emitida por qualquer ser humano ou qualquer ser
senciente - i.é., capaz de sentir e demonstrar prazer, sofrimento ou felicidade
-, o que acaba de ser evidenciado pela sabedoria da atuação da bancada
parlamentar uníssona dos golfinhos (tudo o que eles falam enquanto indivíduos
torna-se uma sinfonia, cujo resultado é uma consciência coletiva perfeitamente
alinhada com o Universo – não há debates entre eles, apenas música) minha
plataforma de campanha é muito simples, até para poupar o tempo
majoritariamente dedicado ao silêncio e à meditação pela maioria das personas (ou seja, pessoas humanas ou
não humanas possuidoras de cidadania). Sim, porque a linguagem e a gramática de
hoje, separando palavras masculinas e femininas, seres humanos e não humanos não
existirá mais. Mas deixemos também de lado essas coisas que poderiam parecer
muito estranhas para as cabeças congeladas dos sul-mato-grossenses e vamos
tratá-los como se nada tivesse acontecido, como se o mundo todo ainda estivesse
no mesmo tempo que eles e os seus problemas atuais, seja lá o que isso signifique.
Voltando a
esta campanha de 2014, portanto, e assim considerando a mente recém-descongelada
dos sul-mato-grossenses, minha mensagem para eles, com a qual me habilito para
postular o cargo de governador foi apenas esta declaração única: Juro que, se for eleito, eu vou cumprir
serena e diariamente o juramento que todos os servidores sempre fazem, de
cumprir a Constituição e as Leis.
Soou
estranho, claro. Por isso (note aqui que já voltamos para um hipotético agora, com a nossa população numa redoma
temporal de aclimatação) levou quase um mês para que as pessoas entendessem que
tudo o que se diz numa campanha é para valer, que é muito mais sério do que
qualquer declaração privada e que, tudo o que é proferido diante de uma
assembleia presencial ou virtual de cidadãos pode ser arguido em um tribunal
político ou judicial, como qualquer declaração pública que mereça fé, inclusive
para a finalidade de cassar o mandato daquele que fez promessas vãs,
irrealizáveis; fez declarações absurdas, insensatas; ou promoveu qualquer
atividade tendente a ludibriar os eleitores, disseminando mentiras de qualquer
espécie ou quilate.
Pois bem. Como
o tempo gratuito reservado em todas as mídias para a minha mensagem às personas esteja sobrando e alguma
perplexidade ainda subsista diante da proposta tão simples e clara de cumprir a
Constituição e as Leis, algo que é, aliás, inevitável num Estado que possa ser
chamado de Estado Democrático de Direito (ou seja, governado pelas leis e não
pelos homens, coisa pela qual a humanidade lutou em todas as revoluções), posso
dar-me ao luxo de explicar como funcionaria então esse governo no qual eu seria
o Primeiro Servidor, título mais apropriado do que Governador, já que todos os
cargos eletivos ou efetivos, temporários ou vitalícios, são reservados para
pessoas de confiança e de ficha imaculada, que juram cumprir as leis e a
Constituição e que prometem bem servir.
Ou seja, são servidores, apenas. No topo dessa hierarquia e somente na medida
em que tal hierarquia seja necessária e razoável, coloca-se um Primeiro Servidor
que se troca a cada mandato.
E aqui já me
adiantei na explicação do que significa cumprir a Constituição e as Leis. A
primeira consequência disso será desistir de qualquer possibilidade de
reeleição. E é claro, isso nem é mais objeto de norma constitucional ou mesmo ordinária,
porque são muito poucas as pessoas que hoje (Ui! Preciso ir com calma!) aceitam
servir ao público por mais do que dois anos sem acrescentar ao patrimônio nada
além do que um diploma de honra ao mérito, muito menos num cargo com tal nível
de responsabilidade. Afinal, ser o Primeiro Servidor implica conduzir a bom
termo uma organização maior, mais diversa e complexa do que qualquer empresa
privada do mundo. Nenhuma grande multinacional, com efeito, se mete com tantos
negócios ao mesmo tempo e submete tudo isso ao juízo de um só gestor.
Sim, acho
que já me adiantei ainda mais. É claro que basta um mandato. E não só isso. Tal
mandato não tem remuneração, apenas as verbas indenizatórias para cobrir
despesas com o suporte vital e o transporte da pessoa. Depois de dois anos, que
assuma a minha candidata a vice. E (ô pressa!) quase ia me esquecendo, as
chapas agora têm sempre uma pessoa do gênero yin e uma pessoa do gênero yang
que se revezarão no cargo durante o mandato. Obviamente, tal característica é
escolha das pessoas e nada tem a ver com a sua constituição física natural.
Como Yin e Yang são aspectos intrinsecamente permutáveis, as pessoas podem
mudar a sua declaração de gênero a qualquer tempo.
Acho
oportuno, então, resumir o que temos até aqui como propostas do meu mandato de
Primeiro Servidor, para não aloprar os sul-mato-grossenses meus irmãos,
encimadas por uma única diretriz: cumprir
serenamente as leis. (Esse serenamente
se contrapõe ao rigorosamente que era
tão utilizado quando ainda vigorava a cultura da violência).
Então,
cumprir serenamente as leis e, por consequência disso:
a) Rejeitar a reeleição;
b) Dividir o mandato com uma pessoa de
índole complementar à minha, entregando-o para ela depois de dois anos;
c) Rejeitar qualquer remuneração para o
cargo, devido à sua importância. Aceitar apenas indenizações de despesas
pessoais comprovadas com alimentação, saúde, repouso e transporte;
d) Contratar um gestor profissional para
despachar com os outros profissionais contratados temporariamente para compor o
Núcleo Estratégico Tecnopolítico do governo, enquanto me dedicarei às reuniões
com o Núcleo Estratégico Político, que inclui os parlamentares e quaisquer
outros cidadãos interessados, inclusive das cortes de contas e da Justiça, além
do controle interno, a fim de passar em revista todos os resultados de todos os
atos praticados pelos gestores no dia-a-dia da gestão e ao final referendá-los
ou não, com base na avaliação de sua legalidade, moralidade, impessoalidade,
publicidade e eficiência. Claro! Resultados só importam se a produção deles
atende aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Isso deveria
bastar como explicação, mas temos um problema, as memórias dos
sul-mato-grossenses em relação aos seus falsos problemas da época em que ainda
não tinham sido congelados, a saber:
a) A agenda das Reformas, a começar pela
Reforma Política, Fiscal e Tributária;
b) O Pacto Federativo e a questão da
tributação em Mato Grosso do Sul;
c) A questão do modelo e da estratégia
de desenvolvimento do Estado;
d) A efetividade dos serviços públicos
de saúde, segurança, educação, etc, ou seja, de todos os serviços voltados para
a manutenção do bem-estar e da paz das pessoas humanas e não humanas.
Terei de explicar porque se tratam de problemas
falsos. E isso resultará em mais outro texto do tamanho deste. Tarefa para
outro dia, porque o lazer é sagrado entre nós.
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